"A literatura tem essa magia de nos tornar contemporâneos de quem quisermos." (Inês Pedrosa)

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Perfeição

Composição: Renato Russo

Vamos celebrar
A estupidez humana
A estupidez de todas as nações
O meu país e sua corja
De assassinos
Covardes, estupradores
E ladrões...


Vamos celebrar
A estupidez do povo
Nossa polícia e televisão
Vamos celebrar nosso governo
E nosso estado que não é nação...
Celebrar a juventude sem escolas
As crianças mortas
Celebrar nossa desunião...


Vamos celebrar Eros e Thanatos
Persephone e Hades
Vamos celebrar nossa tristeza
Vamos celebrar nossa vaidade...


Vamos comemorar como idiotas
A cada fevereiro e feriado
Todos os mortos nas estradas
Os mortos por falta
De hospitais...


Vamos celebrar nossa justiça
A ganância e a difamação
Vamos celebrar os preconceitos
O voto dos analfabetos
Comemorar a água podre
E todos os impostos
Queimadas, mentiras
E seqüestros...


Nosso castelo
De cartas marcadas
O trabalho escravo
Nosso pequeno universo
Toda a hipocrisia
E toda a afetação
Todo roubo e toda indiferença
Vamos celebrar epidemias
É a festa da torcida campeã...


Vamos celebrar a fome
Não ter a quem ouvir
Não se ter a quem amar
Vamos alimentar o que é maldade
Vamos machucar o coração...
Vamos celebrar nossa bandeira
Nosso passado
De absurdos gloriosos
Tudo que é gratuito e feio
Tudo o que é normal
Vamos cantar juntos
O hino nacional
A lágrima é verdadeira
Vamos celebrar nossa saudade
Comemorar a nossa solidão...


Vamos festejar a inveja
A intolerância
A incompreensão
Vamos festejar a violência
E esquecer a nossa gente
Que trabalhou honestamente
A vida inteira
E agora não tem mais
Direito a nada...


Vamos celebrar a aberração
De toda a nossa falta
De bom senso
Nosso descaso por educação
Vamos celebrar o horror
De tudo isto
Com festa, velório e caixão
Tá tudo morto e enterrado agora
Já que também podemos celebrar
A estupidez de quem cantou
Essa canção...


Venha!
Meu coração está com pressa
Quando a esperança está dispersa
Só a verdade me liberta
Chega de maldade e ilusão
Venha!


O amor tem sempre a porta aberta
E vem chegando a primavera
Nosso futuro recomeça
Venha!
Que o que vem é Perfeição!...

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

A Última Crônica

"A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.

Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.

Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.

São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "Parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura - ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido - vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.

Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso."
(Fernando Sabino - Para Gostar de Ler - 1980)

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

O Mundo “Faz de Conta”

Ignorar é não saber alguma coisa. A ignorância pode ser tão profunda que sequer a percebemos ou a sentimos, isto é, não sabemos que não sabemos, não sabemos que ignoramos. Em geral, o estado de ignorância se mantém em nós enquanto as crenças e opiniões que possuímos para viver e agir no mundo se conservam como eficazes e úteis, de modo que não temos nenhum motivo para duvidar delas, nenhum motivo para desconfiar delas e, conseqüentemente, achamos que sabemos tudo o que há para saber.

Vivemos numa sociedade que acredita nas ciências, que luta por escolas, que recebe durante 24 horas diárias informações vindas de jornais, rádios e televisões, que possui editoras, livrarias, bibliotecas, museus, salas de cinema e de teatro, vídeos, fotografias e computadores. Mas conhecemos a verdade?

Essa enorme quantidade de veículos e formas de informação não pode tornar difícil a busca da verdade? Afinal todo mundo acredita que está recebendo, de modos variados e diferentes, informações científicas, filosóficas, políticas, artísticas e que tais informações são verdadeiras. Sobretudo porque tal quantidade informativa ultrapassa a experiência vivida pelas pessoas, que, por isso, não têm meios para avaliar o que recebem. Mas onde está a verdade?

A propaganda trata todas as pessoas – crianças, jovens, adultos, idosos – como crianças extremamente ingênuas e crédulas. O mundo é sempre um mundo “de faz-de-conta”: nele a margarina fresca faz a família bonita, alegre, unida e feliz; o automóvel faz o homem confiante, inteligente, belo, sedutor, bem-sucedido nos negócios, cheio de namoradas lindas; o desodorante faz a moça bonita, atraente, bem empregada, bem vestida, com um belo apartamento e lindos namorados; o cigarro leva as pessoas para belíssimas paisagens exóticas, cheias de aventura e de negócios coroados de sucesso que terminam com lindos jantares à luz de velas.

A propaganda nunca vende um produto dizendo o que ele é e para que serve. Ela vende o produto rodeando-o de magias, belezas, dando-lhe qualidades que são de outras coisas (a criança saudável, o jovem bonito, o adulto inteligente, o idoso feliz, a casa agradável, etc.), produzindo um eterno “faz-de-conta”.

Mas o mundo é realmente como o percebemos?

Este encontro ficou marcado pelas perguntas, você deve perguntar “E as respostas?” Todas essas respostas estão dentro de cada um. Todos estão dispostos a convencer os outros de suas respostas, mas poucos estão dispostos a deixar você buscar suas próprias respostas. Busque você mesmo. Como buscar essas respostas? Não conheço outra maneira a não ser na filosofia, mas não espere aprender filosofia, pois isso não se aprende já dizia Kant, se aprende apenas a filosofar.

Síntese de "A Verdade" - Convite a Filosofia.
Quem foi >> Alan

terça-feira, 18 de agosto de 2009

“Mais do que um inseto”

Dizem que sempre tem algo acontecendo, algo importante, nada está parado. Que o banal nem sempre é banal, quase nunca é. Que há muito a se contemplar nas coisas simples. Há muita beleza a se descobrir neste pequeno intervalo de tempo chamado vida, pois a beleza da vida está nos olhos de quem vê.


"Custei um pouco a compreender o que estava vendo, de tão inesperado e sutil que era: estava vendo um inseto pousado, verde-claro, de pernas altas. Era uma ‘esperança’, o que sempre me disseram que é de bom augúrio. Depois a esperança começou a andar bem de leve sobre o colchão. Era verde transparente, com pernas que mantinham seu corpo plano alto e por assim dizer solto, um plano tão frágil quanto as próprias pernas que eram feitas apenas da cor da casca. Dentro do fiapo das pernas não havia nada dentro: o lado de dentro de uma superfície tão rasa já é a própria superfície. Parecia um raso desenho que tivesse saído do papel, verde e andasse… E andava com uma determinação de quem copiasse um traço que era invisível para mim… Mas onde estariam nele as glândulas de seu destino e as adrenalinas de seu seco verde interior? Pois era um ser oco, um enxerto de gravetos, simples atração eletiva de linhas verdes."

Clarice Lispector - A descoberta do mundo.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Mudança



















"Mudam se os tempos,
Mudam se as vontades;

Muda se o ser,
Muda se a confiança;

Todo mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos diferentes novidades em tudo da esperança,
Do mal ficam as mágoas na lembrança e do bem (se algum ouve) a saudade."

Camões

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Diálogo Extraterrestre















Trabalho de Equipe

— Como foi aquela história mesmo?
— Eram 4 terráqueos: Todomundo; Alguém; Qualquerum e Ninguém.
— Isto mesmo! Continua...
— Havia um importante trabalho a ser feito.
— Certo!
— Todomundo pensou que Alguém o faria.
— Qualquerum podia fazer?
— Sim, Qualquerum podia, mas Ninguém fez.
— Ninguém!
— Todomundo sabia que Qualquerum podia fazer, mas Ninguém imaginou que Todomundo deixaria de fazer esperando Qualquerum.
— E dai? Como é que ficou?
— Todomundo culpou Alguém, quando Ninguém fez o que Qualquerum podia ter feito.

Marcelo Ferrari

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Dogmatismo

Supondo-se que a verdade seja uma mulher — não é bem fundada a suspeita de que todos os filósofos, enquanto dogmáticos, entendem pouco de mulheres?

Que a espantosa seriedade, a indiscrição delicada com que até agora estavam acostumados a afrontar a verdade não eram meios pouco adequados para cativar uma mulher?

O que há de certo é que essa Dama não se deixou cativar — e os dogmáticos de toda a espécie voltaram-se tristemente frente a nós e desencorajaram-se. Se de resto pode-se dizer que ainda estejam em pé! Aqui estão os troçadores que pretendem ter a dogmática caído irremissivelmente e até que esteja agonizante.

Falando sério há um bom motivo para esperar que em filosofia o dogmatizar, ainda que tenha esbanjado frases solenes e aparentemente incontestáveis, tenha sido uma nobre peraltice de diletantes e que está próximo o tempo em que se compreenderá cada vez mais quão mesquinhas são as bases dos edifícios sublimes e aparentemente inabaláveis, erigidos pelos filósofos dogmáticos — alguma superstição sobrevivente de épocas pré-históricas (como superstição da alma que ainda hoje continua a ser fonte de queixumes com a superstição do "sujeito" e do "eu"), sem falar em alguns jogos de palavras, alguns erros gramaticais, ou ainda alguma audaz generalização de muito poucos fatos, muito pessoais e demasiado humanos, antes de mais nada humanos.

A filosofia dos dogmáticos foi, esperamos, simplesmente uma promessa para alguns milhares de anos no futuro, como em tempos ainda remotos o foi a astrologia, a serviço da qual foram dispendidos mais dinheiro, trabalho, perspicácia e paciência de que até agora já se dispendeu com uma ciência positiva qualquer — à astrologia e às suas aspirações sobrenaturais devemos o estilo grandioso da arquitetura da Ásia e do Egito. Parece que toda coisa grande para poder se imprimir com caracteres indeléveis no coração humano deve primeiramente passar sobre a terra sob o aspecto de uma caricatura monstruosa e assustadora; tal caricatura monstruosa foi a filosofia dogmática; por exemplo a doutrina dos Vedas na Ásia e o platonismo na Europa.


Somos ingratos para com eles, ainda que seja necessário confessar que o pior, o mais pertinaz e o mais perigoso de todos os erros foi o de um filósofo dogmático e precisamente a invenção platônica do “puro espírito” e do bom por si mesmo. Mas hoje que o superamos, que a Europa (Mundo) respira aliviada de., tal incubo e que pelo menos pode dormir um sono mais salutar, somos, nós cuja única junção é permanecermos acordados, somos os herdeiros de toda força, acumulada pela longa luta contra o erro. Seria preciso colocar a verdade de pernas para o ar, renegar a perspectiva, a condição fundamental da vida, para falar do espírito do bem como o faz Platão; antes, como médico, poder-se-ia perguntar "por que uma tal moléstia no produto mais belo da Antigüidade, em Platão?


Seria então verdadeiro que o malvado Sócrates o teria corrompido? Seria Sócrates efetivamente o corruptor da juventude? Mereceu, na verdade, a sua cicuta?" Porém a luta contra Platão, ou para dizê-lo de modo mais inteligível e popular, a luta contra a milenar opressão clerical cristã — uma vez que o Cristianismo é um Platonismo para a povo — produziu, na Europa, uma maravilhosa tensão dos espíritos até então nunca vista na terra; com o arco vergado de tal forma pode-se visar o alvo mais longínquo. É verdade que para o europeu esta tensão é causa de mal-estar; e duas grandes tentativas de relaxar o arco já foram feitas, a primeira vez com o jesuitismo e a segunda com a propaganda das idéias democráticas.


Com o auxílio da liberdade de imprensa e com a leitura dos jornais chegamos a tal ponto que o espírito não sentirá mais incubo de si mesmo. (Os alemães inventaram a pólvora, que isto lhes sirva de orgulho; mas inventaram a imprensa e com isso cometeram erros!) Mas nós, nós que não somos jesuítas, democratas e nem mesmo suficientemente alemães, nós, nós bons europeus (humanos) e espíritos livres — sentimos agora toda a opressão do espírito, possuímos toda a tensão do arco! E, é claro, também a seta, a tarefa, e quem sabe? o alvo...



F. Nietzsche - Além do Bem e do Mal

Sils-Maria, Engadina Sup., junho de 1885.


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