"A literatura tem essa magia de nos tornar contemporâneos de quem quisermos." (Inês Pedrosa)

domingo, 26 de dezembro de 2010

Exaltação da existência

Aqui nada há que lembre ascese, espiritualidade e dever, aqui só nos fala uma opulenta e triunfante existência, onde tudo o que se faz presente é divinizado, não importando se seja bom ou mau. E assim, é possível que o observador fique realmente surpreendido ante essa fantástica exaltação da vida e se pergunte com qual filtro mágico no corpo puderam tais homens exuberantes desfrutar da vida a ponto de se depararem, para onde quer que olhassem, com o riso de Helena – a imagem ideal, “pairando em doce sensualidade”, da própria existência deles.

(Friedrich Nietzsche, in O Nascimento da Tragédia)

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Nossa única liberdade...

"Nossa única liberdade é escolher entre a amargura e o prazer. Sendo nosso quinhão a insignificância de tudo, não devemos tomá-la como uma tara, mas saber nos alegrar com ela. A lberdade? Ao viver a sua miséria, você pode ser feliz ou infeliz. É nessa escolha que consiste sua liberdade. Somos livres para dissolvermos nossa individualidade no caldeirão da multidão com um sentimento de derrota, ou então com euforia."


(Milan Kundera)

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Acordo de súbito

Leonid Afremov
De repente, como se um destino médico me houvesse operado de uma cegueira antiga com grandes resultados súbitos, ergo a cabeça, da minha vida anônima, para o conhecimento claro de como existo. E vejo que tudo quanto tenho feito, tudo quanto tenho pensado, tudo quanto tenho sido, é uma espécie de engano e de loucura. Maravilho-me do que consegui não ver. Estranho quanto fui e que vejo que afinal não sou. 
Olho, como numa extensão ao sol que rompe nuvens, a minha vida passada; e noto, com um pasmo metafísico, como todos os meus gestos mais certos, as minhas idéias mais claras, e os meus propósitos mais lógicos, não foram, afinal, mais que bebedeira nata, loucura natural, grande desconhecimento. Nem sequer representei. Representaram-me. Fui, não o ator mas os gestos dele. 
Tudo quanto tenho feito, pensado, sido, é uma soma de subordinações, ou a um ente falso que julguei meu, por que agi dele para fora, ou de um peso de circunstâncias que supus ser o ar que respirava. Sou, neste momento de ver, um solitário súbito, que se reconhece desterrado onde se encontrou sempre cidadão. No mais íntimo do que pensei não fui eu. 
Vem-me, então, um terror sarcástico da vida, um desalento que passa os limites da minha individualidade consciente. Sei que fui erro e descaminho, que nunca vivi, que existi somente porque enchi tempo com consciência e pensamento. E a minha sensação de mim é a de quem acorda depois de um sono cheio de sonhos reais, ou a de quem é liberto, por um terremoto, da luz pouca do cárcere a que se habituara. 
Pesa-me, realmente me pesa, como uma condenação a conhecer, esta noção repentina da minha individualidade verdadeira, dessa que andou sempre viajando sonolentamente entre o que sente e o que vê. 
É tão difícil descrever o que se sente quando se sente que realmente se existe, e que a alma é uma entidade real, que não sei quais são as palavras humanas com que possa defini-lo. (...) Sim, repito, sou como um viajante que de repente se encontre numa vila estranha, sem saber como ali chegou (grifo meu); e ocorrem-me esses casos dos que perdem a memória, e são outros durante muito tempo. Fui outro durante muito tempo — desde a nascença e a consciência —, e acordo agora no meio da ponte, debruçado sobre o rio, e sabendo que existo mais firmemente do que fui até aqui. Mas a cidade é me incógnita, as ruas novas, e o mal sem cura. Espero, pois, debruçado sobre a ponte, que me passe a verdade, e eu me restabeleça nulo e fictício, inteligente e natural. 
Foi um momento, e já passou. Já vejo os móveis que me cercam, os desenhos do papel velho das paredes, o sol pelas vidraças poeirentas. Vi a verdade um momento. Fui um momento, com consciência, o que os grandes homens são com a vida. Recordo-lhes os atos e as palavras, e não sei se não foram também tentados vencedoramente pelo Demônio da Realidade. Não saber de si é viver. Saber mal de si é pensar. Saber de si, de repente, como neste momento lustral, é ter subitamente a noção da mônada íntima, da palavra mágica da alma. Mas uma luz súbita cresta tudo, consome tudo. Deixa-nos nus até de nós. 
Foi só um momento, e vi-me. Depois já não sei sequer dizer o que fui. E, por fim, tenho sono, porque, não sei porquê, acho que o sentido é dormir. 

(Fernando Pessoa, in Livro do Desassossego)

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

O derradeiro mistério

Edward Hopper
As pessoas cujo desejo é unicamente a auto-realização, nunca sabem para onde se dirigem. Não podem saber. Numa das acepções da palavra, é obviamente necessário, como o oráculo grego afirmava, conhecermo-nos a nós próprios. É a primeira realização do conhecimento. Mas reconhecer que a alma de um homem é incognoscível é a maior proeza da sabedoria. O derradeiro mistério somos nós próprios. Depois de termos pesado o Sol e medido os passos da Lua e delineado minuciosamente os sete céus, estrela a estrela, restamos ainda nós próprios. Quem poderá calcular a órbita da sua própria alma?

(Oscar Wilde, in 'De Profundis')

sábado, 11 de dezembro de 2010

Ilusão

Às vezes, o pensamento mais estranho, mais impossível na aparência, apodera-se de nós com tal poder, que acabamos por julgá-lo realizável... Mais ainda: se a idéia se associa a um desejo violento, apaixonado, tomamo-la às vezes, no fim das contas, por algo fatal, inelutável, predestinado. Talvez haja aí, também, um não sei quê, uma combinação de pressentimentos, um esforço extraordinário de vontade, uma intoxicação por sua própria fantasia...

(Fiodor Dostoiévski, in O Jogador)

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

O Livro


Dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso é, indubitavelmente, o livro. Os outros são extensões do seu corpo. O microscópio e o telescópio são extensões da vista; o telefone é o prolongamento da voz; seguem-se o arado e a espada, extensões do seu braço. Mas o livro é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação.  Em «César e Cleópatra» de Shaw, quando se fala da biblioteca de Alexandria, diz-se que ela é a memória da humanidade. O livro é isso e também algo mais: a imaginação. Pois o que é o nosso passado senão uma série de sonhos? Que diferença pode haver entre recordar sonhos e recordar o passado? Tal é a função que o livro realiza. (...) Se lemos um livro antigo, é como se lêssemos todo o tempo que transcorreu até nós desde o dia em que ele foi escrito. Por isso convém manter o culto do livro. O livro pode estar cheio de coisas erradas, podemos não estar de acordo com as opiniões do autor, mas mesmo assim conserva alguma coisa de sagrado, algo de divino, não para ser objecto de respeito supersticioso, mas para que o abordemos com o desejo de encontrar felicidade, de encontrar sabedoria. 

(Jorge Luís Borges, in 'Ensaio: O Livro')

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Demônios Míticos

Hieronymus Bosch
Na política, vivemos o tempo todo sobre o solo vulcânico. Devemos estar preparados para convulsões e erupções abruptas. Em todos os momentos críticos da vida social, as forças racionais que resistem à ascensão das antigas concepções míticas já não estão seguras de si mesmas. Nesses momentos é chegada, uma vez mais, a hora do mito. Pois o mito não foi realmente vencido e subjugado. Ele está sempre a espreita, na sombra, esperando sua hora e oportunidade. Esse momento chega quando as demais forças coesoras da vida social, por uma razão ou pro outra, perdem sua força e já não são capazes de combates os demoníacos poderes míticos.

(Ernest Cassierer, The Myth of the State, 1946)

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

A desgraça do sonhador

E vocês sabem o que é um sonhador, cavalheiros? É um pecado personificado, uma tragédia misteriosa, escura e selvagem, com todos os seus horrores frenéticos, catástrofes, devaneios e fins infelizes... um sonhador é sempre um tipo difícil de pessoa porque ele é enormemente imprevisível: umas vezes muito alegre, às vezes muito triste, às vezes rude, noutras muito compreensivo e enternecedor, num momento um egoísta e noutro capaz dos mais honoráveis sentimentos... não é uma vida assim uma tragédia? Não é isto um pecado, um horror? Não é uma caricatura? E não somos todos mais ou menos sonhadores? 


(Fiodor Dostoievski)

domingo, 5 de dezembro de 2010

Cidadezinha Qualquer

Narni Corot
CIDADEZINHA QUALQUER
1967 - JOSÉ & OUTROS 


Casas entre bananeiras 
mulheres entre laranjeiras 
pomar amor cantar. 

Um homem vai devagar. 
Um cachorro vai devagar. 
Um burro vai devagar. 
Devagar ... as janelas olham. 

Eta vida besta, meu Deus. 



(Carlos Drummond de Andrade)

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

O Sensível

Leonid Afremov
Quem parte, de manhã bem cedo, para a caça, de barriga vazia e as narinas frementes à menor mudança do vento, quem escuta, inquieto, a ressaca bater na popa do barco, alertando os primeiros odores das folhas por entre o muro espesso dos perfumes das algas e do sal, quem aguça sua vida e seus ouvidos a distância? Quem hoje, não tem necessidade de cartaz ou de mensagem para se permitir ouvir, olhar, sentir, saborear? Órgãos arruinados, empirismo em ruína; impressões perdidas, fantasmas. Desde que falamos, perdemos os sentidos. O que não desperta os sentidos, droga-os. Toma cuidado com o torpor da língua e de filosofia; foge das culturas de proibição. A sabedoria emana do corpo: o mundo dá a sapiência, e os sentidos a recebem, respeita o dado gratuito, acolhe o dom. O mundo belo, oferece gratuitamente o sensível.

(Michel Serres)

sábado, 27 de novembro de 2010

Otimismo Radical

Van Gogh "Os comedores de batata"

Hoje julgamos todas as coisas a partir de um encadeamento real e racional. Mas com a mesma força e razão poderíamos referi-las a um encadeamento irracional - basta inverter a perspectiva de uma transcendência providencial para uma transcendência maléfica. Ficaríamos menos desesperados se pensássemos que cada desgraça estaria justificada com relação a uma ordem do mal. Tal é a regra do otimismo radical. É preciso fazer do mal a regra do jogo. É então que a exceção passa a ser a da felicidade. É a alegria que se torna fatal. Confere ao bem e à felicidade um prestígio novo: o de uma miraculosa exceção.

(Jean Baudrillard)

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Autonomia

John Singer Sargent

Se eu deixar de interferir nas pessoas,
elas se encarregarão de si mesmas,
Se eu deixar comandar às pessoas,
elas se comportam por si mesmas,
Se eu deixar de pregar às pessoas, 
elas se aperfeiçoam por si mesmas,
Se eu deixar de me impor às pessoas
elas se tornam elas mesmas.

(Fadiman e Frager)

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Que é viajar?

"Noite Estrelada" Van Gogh

Que é viajar, e para que serve viajar? Qualquer poente é o poente... porque se a libertação não está em mim, não está, para mim, em parte alguma. Nunca desembarcamos de nós. " Por mais alto que subamos e mais baixo que desçamos, nunca saímos das nossas sensações", segundo Condillac. As verdadeiras paisagens são as que nós mesmos criamos, porque assim, sendo deuses delas, as vemos como elas verdadeiramente são, que é como foram criadas. Quem cruzou todos os mares, cruzou somente a monotonia de si mesmo. Já cruzei mais mares do que todos. Passei já por cidades mais que as existentes, e os grandes rios de nenhuns mundos fluíram, absolutos, sob os meus olhos contemplativos. Se viajasse, encontraria a cópia débil do que já vira sem viajar. 


(Fernando Pessoa)

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Solidão

Edward Hopper

Se ao menos eu pudesse lhe dar uma idéia dos meus sentimentos de solidão! Não existe ninguém a quem eu me sinta próximo, tanto entre os vivos quanto entre os mortos. Isto é inimaginavelmente apavorante. Apenas o constante exercício de aprender como tolerar este sentimento, e o desenvolvimento passo-a-passo, desde a infância, da minha capacidade de tolerá-lo – permitem-me compreender como eu ainda não pereci em razão disto. De resto, a tarefa pela qual vivo me desafia claramente: é a realidade de uma tristeza inimaginável, ainda que transformada pela consciência de que há nela grandiosidade – se é que a grandiosidade persiste por algum tempo na tarefa de um mortal. 

(Friedrich Nietzsche, Sils-Maria, 06 de Agosto de 1886. Carta a Franz Overbeck)

domingo, 21 de novembro de 2010

A verdadeira arte de viajar

Imagem domínio público

















A gente sempre deve sair à rua como quem foge de casa,
Como se estivessem abertos diante de nós todos os caminhos do mundo.
Não importa que os compromissos, as obrigações, estejam ali...
Chegamos de muito longe, de alma aberta e o coração cantando!


(Mário Quintana in “A cor do invisível”)

sábado, 20 de novembro de 2010

Um lugar...

As cidades estão cheias de gente. As casas cheias de inquilinos. Os hotéis cheios de hóspedes. Os trens cheios de viajantes. Os cafés cheios de consumidores. As praias cheias de banhistas. O que antes não era um problema, hoje começa a sê-lo: encontrar um lugar. 

(José Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas)

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Filosofia, pra que serve?


O leitor ocupado perguntará para que serve a filosofia. Pergunta vergonhosa, que não fazemos à poética, essa outra construção imaginativa de um mundo mal conhecido. Se a poesia nos revela a beleza que os nossos olhos ineducados não vêem, e se a filosofia nos dá os meios de compreender e perdoar, não lhes peçamos mais - isso vale todas as riquezas da Terra. A filosofia não enche a nossa carteira, não nos ergue às dignidades do Estado; é até bastante descuidosa destas coisas. Mas de que vale engordar a carteira, subir a altos postos e permanecer na ignorância ingénua, desapetrechado de espírito, brutal na conduta, instável no carácter, caótico nos desejos e cegamente infeliz? A maturidade é tudo. Talvez que a filosofia nos dê, se lhe formos fiéis, uma sadia unidade de alma. Somos negligentes e contraditórios no nosso pensar; talvez ela possa classificar-nos, dar-nos coerência, libertar-nos da fé e dos desejos contraditórios.  Da unidade de espírito pode vir essa unidade de carácter e propósitos que faz a personalidade e dá ordem e dignidade à vida. Filosofia é conhecimento harmónico, criador da vida harmónica; é disciplina que nos leva à serenidade e à liberdade. Saber é poder, mas só a sabedoria é liberdade. 

(Will Durant, in "Filosofia da Vida")

domingo, 14 de novembro de 2010

Escravos de si mesmos


A suposição de que a identidade de uma pessoa transcende, em grandeza e importância, tudo o que ela possa fazer ou produzir é um elemento indispensável da dignidade humana. (...) Só os vulgares consentirão em atribuir a sua dignidade ao que fizeram; em virtude dessa condescendência serão «escravos e prisioneiros» das suas próprias faculdades e descobrirão, caso lhes reste algo mais que mera vaidade estulta, que ser escravo e prisioneiro de si mesmo é tão ou mais amargo e humilhante que ser escravo de outrem. 

(Hannah Arendt, in 'A Condição Humana')

sábado, 13 de novembro de 2010

Independência do Homem

Edvard Munch
Mal podemos acreditar no filósofo a quem tudo deixa indiferente; não acreditamos na tranquilidade do estóico, não desejamos sequer a impavidez, porque a própria condição humana nos lança na paixão e no medo, e são as lágrimas e o júbilo que nos permitem conhecer o que é. Eis por que somente o impulso ascendente nos liberta das perturbações anímicas e não é pela supressão que nos encontramos. Temos, pois, que nos arriscar a ser homens e, enquanto homens, fazermos o que pudermos para alcançar a independência conquistada. Sofreremos então sem queixume, desesperar-nos-emos sem nos afundarmos, abalados mas nunca completamente derrubados quando suspensos à íntima independência que em nós se gera.  A filosofia, porém, é a escola dessa independência, não a sua posse. 


(Karl Jaspers, in 'Iniciação Filosófica')

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Coragem!

Tem coragem, irmão meu? Tem valentia? Não coragem diante de testemunhas, mas valentia de solitário e daquele ao qual nem mesmo um deus faz mais do que ser espectador. As almas frias, cegas, bêbadas, não são para mim corajosas. Tem coração aquele que conhece o medo, mas tem somente controle sobre o medo; aquele que olha para o abismo, mas com orgulho. Que olha para o abismo, mas com olhos de águia — que com garras de águia prende o abismo: isto constitui a coragem.

(Friedrich Nietzsche)

sábado, 6 de novembro de 2010

Toda percepção da verdade...

Norman Parker
" Toda percepção da verdade é o descobrimento de uma analogia. A verdade não tem inimigos. A verdade é a verdade de cada um. Um pensamento sincero é a melhor espécie de verdade. A única maneira de falar a verdade é falar com o coração. O intelecto não deveria falar nunca: não é um som natural. O homem pode apenas exprimir sua relação com a verdade, mas não a verdade em si mesma."

(Henry Thoreau)

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Justiça e liberdade


A revolução do século XX separou arbitrariamente, para fins desmesurados de conquista, duas noções inseparáveis. A liberdade absoluta mete a justiça a ridículo. A justiça absoluta nega a liberdade. Para serem fecundas, as duas noções devem descobrir os seus limites uma dentro da outra. Nenhum homem considera livre a sua condição se ela não for ao mesmo tempo justa, nem justa se não for livre. Precisamente, não pode conceber-se a liberdade sem o poder de clarificar o justo e o injusto, de reivindicar todo o ser em nome de uma parcela de ser que se recusa a extinguir-se. Finalmente, tem de haver uma justiça, embora bem diferente, para se restaurar a liberdade, único valor imperecível da história. Os homens só morrem bem quando o fizeram pela liberdade: pois, nessa altura, não acreditavam que morressem por completo. 

(Albert Camus, in "O Mito de Sísifo")

domingo, 31 de outubro de 2010

A compreensão humana

A compreensão humana não é um exame desinteressado, mas recebe infusões da vontade e dos afetos; disso se originam ciências que podem ser chamadas ciências conforme a nossa vontade. Pois um homem acredita mais facilmente no que gostaria que fosse verdade. Assim, ele rejeita coisas difíceis pela impaciência de pesquisar; coisas sensatas, porque diminuem a esperança; as coisas mais profundas da natureza, por superstição; a luz da experiência, por arrogância e orgulho; coisas que não são comumente aceitas, por deferência à opinião do vulgo. Em suma, inúmeras são as maneiras, e às vezes imperceptíveis, pelas quais os afetos colorem e contaminam o entendimento.


(Francis Bacon)

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Morte

Habitua-te a pensar que a morte não é nada para nós, pois que o bem e o mal só existem na sensação. Donde se segue que um conhecimento exacto do facto de a morte não ser nada para nós permite-nos usufruir esta vida mortal, evitando que lhe atribuamos uma idéia de duração eterna e poupando-nos o pesar da imortalidade. Pois nada há de temível na vida para quem compreendeu nada haver de temível no facto de não viver. É pois, tolo quem afirma temer a morte, não porque sua vinda seja temível, mas porque é temível esperá-la. Tolice afligir-se com a espera da morte, pois trata-se de algo que, uma vez vindo, não causa mal. Assim, o mais espantoso de todos os males, a morte, não é nada para nós, pois enquanto vivemos, ela não existe, e quando chega, não existimos mais. Não há morte, então, nem para os vivos nem para os mortos, porquanto para uns não existe, e os outros não existem mais (...)

(Epicuro, in "A Conduta na Vida")

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Espírito do Capitalismo

“(...) ganhar dinheiro e sempre mais dinheiro, no mais rigoroso resguardo de todo o gozo imediato do dinheiro ganho, algo tão completamente despido de todos os pontos de vista eudemonistas ou mesmo hedonistas  e pensado tão exclusivamente como um fim em si mesmo, que, em comparação com a ‘felicidade’ do indivíduo ou sua ‘utilidade’, aparece em todo caso como inteiramente transcendente e  simplesmente irracional. O ser humano em função do ganho como finalidade da vida, não mais o ganho em função do ser humano como meio destinado a satisfazer suas necessidades materiais. Essa inversão da ordem  por assim dizer, ‘natural’ das coisas, totalmente sem sentido para a sensibilidade ingênua, é tão manifestamente e sem reservas o espírito do capitalismo.”    

(Max Weber)

sábado, 23 de outubro de 2010

O que sabemos de nós próprios...

O que sabemos de nós próprios, é o que a nossa memória reteve, é menos decisivo do que se pensa para a felicidade da nossa vida. Chega um dia em que surge nela aquilo que, sabem os outros (ou julgam saber), de nós: damo-nos conta de que a sua opinião é mais poderosa. Arranjamo-nos melhor com a má consciência do que com a má reputação.

(Friedrich Nietzsche)

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Não há critérios senão imanentes...

Van Gogh


“... não há critérios senão imanentes, e uma possibilidade de vida se avalia nela mesma, pelos movimentos que ela traça e pelas intensidades que ela cria, sobre um plano de imanência; é rejeitado o que não traça nem cria. Um modo de existência é bom ou mau, nobre ou vulgar, cheio ou vazio, independente do Bem e do Mal, e de todo valor transcendente: não há nunca outro critério senão o teor da existência, a intensificação da vida.”

- Gilles Deleuze,
O que é a filosofia?

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Embriaguez


"É preciso estar sempre embriagado. Eis aí tudo: é a única questão. Para não sentirdes o horrível fardo do tempo que rompe os vossos ombros e vos inclina para o chão, é preciso embriagar-vos sem trégua. Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa maneira. Mas embriagai-vos. E se, alguma vez, nos degraus de um palácio, sobre a grama verde de um precipício, na solidão morna do vosso quarto, vós acordardes, a embriaguez já diminuída ou desaparecida, perguntai ao vento, à onda, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que foge, a tudo que geme, a tudo que anda, a tudo que canta, a tudo que fala, perguntai que horas são; e o vento, a onda, a estrela, o pássaro, o relógio, responder-vos-ão: 'É hora de embriagar-vos! Para não serdes os escravos martirizados do tempo, embriagai-vos: embriagai-vos sem cessar! De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa maneira'."

(Charles Baudelaire)

domingo, 17 de outubro de 2010

Sabedoria...

O que é a sabedoria? É a felicidade na verdade, ou «a alegria que nasce da verdade». Esta é a expressão que Santo Agostinho utiliza para definir a beatitude, a vida verdadeiramente feliz, em oposição ás nossas pequenas felicidades, sempre mais ou menos factícias ou ilusórias. Sou sensível ao facto de que é a mesma palavrabeatitude que Espinoza retomará, bem mais tarde, para designar a felicidade do sábio, a felicidade que não é a recompensa da virtude mas a própria virtude... a beatitude é a felicidade do sábio, em oposição às felicidades que nós, que não somos sábios, conhecemos comumente, ou, digamos, às nossas aparências de felicidade, que às vezes são alimentadas por drogas ou álcoois, muitas vezes por ilusões, diversão ou má-fé. Pequenas mentiras, pequenos derivativos, remedinhos, estimulantezinhos... não sejamos severos demais. Nem sempre podemos dispensá-los. Mas a sabedoria é outra coisa. A sabedoria seria a felicidade na verdade. 
A sabedoria? É uma felicidade verdadeira ou uma verdade feliz. Não façamos disso um absoluto, porém. Podemos ser mais ou menos sábios, do mesmo modo que podemos ser mais ou menos loucos. Digamos que a sabedoria aponta para uma direcção: a do máximo de felicidade no máximo de lucidez. 

(André Compte-Sponville, in 'A Felicidade, Desesperadamente')

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Conhece-te a ti mesmo!


Salvador Dalí
Conhece-te a ti mesmo! — De que me há de servir? Se a mim me conhecesse, desatava a fugir. [...] Com isto confesso que a grande tarefa — Conhece-te a ti mesmo! —, que soa tão importante, sempre me pareceu suspeita, como um ardil de padres secretamente coligados que quisessem perturbar o homem por meio de exigências inatingíveis e desviá-lo da actividade no mundo externo para uma falsa contemplação interior. [... ] Cada novo objecto, bem observado, abre em nós um novo órgão. Do máximo proveito nesse sentido são, porém, os nossos semelhantes, que têm a vantagem de nos compararem com o mundo a partir de seu próprio ponto de vista, e por isso atingem um melhor conhecimento de nós que nós mesmos podemos alcançar. 

(Johann W. Goethe)

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