"A literatura tem essa magia de nos tornar contemporâneos de quem quisermos." (Inês Pedrosa)

sábado, 30 de janeiro de 2010

Na ilha

"Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites, manhãs e madrugadas em que não precisamos de morrer.

Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente E entra em nós uma grande serenidade, e dizem-se as palavras que a significam. Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas mãos. Com doçura. Aí se contém toda a verdade suportável: O contorno, vontade e os limites. Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos ossos dela.

Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres como a água,
a pedra e a raiz. Cada um de nós é por enquanto a vida. Isso nos baste."

(José Saramago)

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Existencia

O homem começa por existir, isto é, o homem é de início o que se lança para um futuro e o que é consciente de se projetar no futuro. O homem é primeiro um projeto que se vive subjetivamente, em vez de ser um musgo, podridão ou couve-flor; nada existe previamente a esse projeto; nada existe no céu inatingível, e o homem será em primeiro lugar o que tiover projetado ser. Não o que tiver querido ser.

Porque o que entendemos ordinariamente por querer é uma decisão consciente, e para a generalidade das pessoas, posterior ao que se elaborou nelas. Posso querer aderir a um partido, escrever um livro, casar-me: tudo isso é manifestação de uma escolha mais original, mais espontânea do que se denomina por vontade.

(JEAN PAUL SARTRE)

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Decadencia

Uma decadência se abaterá... deverá surgir uma nova forma de filosofia, que será concreta na expressão, e produto da experiência imediata, não buscará consnso geral, fará pouco de Deus e proclamará aquele bem que um homem pode contemplar-se praticando-o, nenhum outro mais.

A decadência do mundo greco-romano foi grande, mas sugeria bolhas de vida convertidas em mármore, ao passo que o que nos espera, sendo democrático e primário, pode sugerir bolhas num lago congelado - luz de estrelas matemática e babilônica...


(WILLIAM YEATS)

sábado, 23 de janeiro de 2010

Humanismo


Imaginemos que a humanidade (é algo que pode ocorrer), se torne uma espécie em via de extinção. Baleias, elefantes e gorilas não fariam nada para nos ajudar. O humanismo é próprio do homem.

A ecologia também. A humanidade não é apenas uma espécie animal; é também uma virtude, e isso basta para exprimir a singularidade dessa espécie.
Não se sabe como isso começou, nem mesmo, se houve um começo. Mas sabemos que só fazemos contar essa história que nos precede, que nos gera, que nos habita, que é essa nossa tarefa, nosso destino, nossa dignidade, enfim, o único lugar possível para nós, tanto da coragem como da felicidade.

Toda vida é recebida. Resta apenas vivê-la. Gerada, não criada. Resta apenas inventá-la.


ANDRÉ COMTE-SPONVILLE

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Injustiça

É tolice cometer injustiça- A injustiça que fazemos é bem mais difícil de suportar do que a injustiça que alguém faz conosco (não exatamente por razões morais, note-se bem-); o autor é sempre aquele que sofre, quando é suscetível a remorsos ou tem a percepção de que, mediante seu ato, armou a sociedade contra si e se isolou. Por isso devemos, já por conta de nossa felicidade interior, ou seja, para não sermos privados de nosso bem-estar, independentemente do que pedem a religião e a moral, tratar de não cometer injustiça, mais ainda que de não sofrer injustiça: pois nesse último caso temos o consolo da boa consciência, da esperança de vingança, de compaixão e de aplauso dos justos, até mesmo da sociedade inteira, que tem medo de quem fez o mal. - Não são poucos os que entendem do feio auto-embuste que é transmutar toda injustiça que fazem numa que lhe é feita por outra pessoa, e reservar-se o direito excepcional da legítima defesa para desculpar o que eles mesmo fizeram: para assim carregar mais facilmente o seu fardo.

[Nietzsche; Humano, Demasiado Humano, 52]

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Nietzsche: A Moral

Sempre compreendi que a moral tem por função tornar possível a vida comunitária. Todo rebanho é moral, todo rebanho precisa de uma moral. Mas aqui devemos examinar bem o que eu queria dizer, o que eu compreendia e que poucos compreenderam. Essas regras societárias sãoprescrições necessárias, de utilidade social, e fazem o cunho de sua época. Não são imutáveis nem eternas, nem sobrenaturarais nem perfeitas, mas criadas pelos homens para regularem entre si as suas relações, impostas pelos chefes aos subordinados, pelos dominadores aos dominados. Nem sempre há uma justificação para essa nova ordem, que se apresenta como uma “ordem moral”, “um imperativo moral”, emana de um Deus que justifica.

Essa moral heterônoma, imposta, escolhida pelos dominadores, imposta pelo passado e predominante no presente pela vontade dos que representam os interesses do passado, é ódio para mim. Quis substituir o “tu deves” pelo “eu quero”. O homem não é homem enquanto não puder praticar este grande ato de liberdade, que o tornará, senhor de si, quando respeitar á dignidade alheia por amor à sua própria dignidade, e assim o fará porque quer e não porque deve.

Aos que afirmam que o homem é incapaz de atingir esse reino de liberdade, replico-lhes que é sua fraqueza que fala através de suas palavras.”

(Friedrich Nietzsche - A Genealogia da Moral)

[Imagem: Edvard Munch]

domingo, 10 de janeiro de 2010

Pensamentos e Fragmentos


Sejam meus, sejam seus ou de algum gênio morto, esquecido e enterrado, ainda restam as palavras, que por vezes resumem uma vida. Outras vezes, esses códigos chamados de escrita, através de palavras nos leva um climax de prazer ou nos dilacera com a mais terrível verdade. Palavras - sólidas pontes entre os abismos que há entre todos nós.
Recomeço outra vez, mudo novamente e não me canso de mudar. Se minha caminhada fosse constante por uma estrade reta, suporia que tivesse encontrado a tal Felicidade. Porém ando só, por estradas cheias de curvas, ingremes subidas e descidas - uma constante aventura.
Durante minha viagem perdi muitas das ilusões, que pesavam nessa longa caminhada. Mudo de estrada, conheço novos lugares, novas vivencias e experiencias que me motivam a sempre caminhar, sem jamais parar.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Evolução de uma miopia


Se era inteligente, não sabia. Ser ou não inteligente dependia da instabilidade dos outros. Às vezes o que ele dizia despertava de repente nos adultos um olhar satisfeito e astuto. Satisfeito, por guardarem em segredo o fato de acharem-no inteligente e não o mimarem; astuto, por participarem mais do que ele próprio daquilo que ele dissera. Assim, pois, quando era considerado inteligente, tinha ao mesmo tempo a inquieta sensação de inconsciência: alguma coisa lhe havia escapado. A chave de sua inteligência também lhe escapava. Pois às vezes, procurando imitar a si mesmo, dizia coisas que iriam certamente provocar de novo o rápido movimento no tabuleiro de damas, pois era esta a impressão de mecanismo automático que ele tinha dos membros de sua família: ao dizer alguma coisa inteligente, cada adulto olharia rapidamente o outro, com um sorriso claramente suprimido dos lábios, um sorriso apenas indicado com os olhos, "como nós sorriríamos agora, se não fôssemos bons educadores" - e, como numa quadrilha de dança de filme de far-west, cada um teria de algum modo trocado de par e lugar. Em suma, eles se entendiam, os membros de sua família; e entendiam-se à sua custa. Fora de se entenderem à sua custa, desentendiam-se permanentemente, mas como nova forma de dançar uma quadrilha: mesmo quando se desentendiam, sentia que eles estavam submissos às regras de um jogo, como se tivessem concordado em se desentenderem.

Às vezes, pois, ele tentava reproduzir suas próprias frases de sucesso, as que haviam provocado movimento no tabuleiro de damas. Não era propriamente para reproduzir o sucesso passado, nem propriamente para provocar o movimento mudo da família. Mas para tentar apoderar-se da chave de sua "inteligência". Na tentativa de descoberta de leis e causas, porém, falhava. E, ao repetir uma frase de sucesso, dessa vez era recebido pela distração dos outros. Com os olhos pestanejando de curiosidade, no começo de sua miopia, ele se indagava por que uma vez conseguia mover a família, e outra vez não. Sua inteligência era julgada pela falta de disciplina alheia?

Mais tarde, quando substituiu a instabilidade dos outros pela própria, entrou por um estado de instabilidade consciente. Quando homem, manteve o hábito de pestanejar de repente ao próprio pensamento, ao mesmo tempo que franzia o nariz, o que deslocava os óculos - exprimindo com esse cacoete uma tentativa de substituir o julgamento alheio pelo próprio, numa tentativa de aprofundar a própria perplexidade. Mas era um menino com capacidade de estática: sempre fora capaz de manter a perplexidade como perplexidade, sem que ela se transformasse em outro sentimento.

Que a sua própria chave não estava com ele, a isso ainda menino habituou-se a saber, e dava piscadelas que, ao franzirem o nariz, deslocavam os óculos. E que a chave não estava com ninguém, isso ele foi aos poucos adivinhando sem nenhuma desilusão, sua tranqüila miopia exigindo lentes cada vez mais fortes.

Por estranho que parecesse, foi exatamente por intermédio desse estado de permanente incerteza e por intermédio da prematura aceitação de que a chave não está com ninguém - foi através disso tudo que ele foi crescendo normalmente, e vivendo em serena curiosidade. Paciente e curioso. Um pouco nervoso, diziam, referindo-se ao tique dos óculos. Mas "nervoso" era o nome que a família estava dando à instabilidade de julgamento da própria família. Outro nome que a instabilidade dos adultos lhe dava era o de "bem comportado", de "dócil". Dando assim um nome não ao que ele era, mas à necessidade variável dos momentos.

Uma vez ou outra, na sua extraordinária calma de óculos, acontecia dentro dele algo brilhante e um pouco convulsivo como uma inspiração.

Foi, por exemplo, quando lhe disseram que daí a uma semana ele iria passar um dia inteiro na casa de uma prima. Essa prima era casada, não tinha filhos e adorava crianças. "Dia inteiro" incluía almoço, merenda, jantar, e voltar quase adormecido para casa. E quanto à prima, a prima significava amor extra, com suas inesperadas vantagens e uma incalculável pressurosidade - e tudo isso daria margem a que pedidos extraordinários fossem atendidos. Na casa dela, tudo aquilo que ele era teria por um dia inteiro um valor garantido. Ali o amor, mais facilmente estável de apenas um dia, não daria oportunidade a instabilidades de julgamento: durante um dia inteiro, ele seria julgado o mesmo menino.

Na semana que precedeu "o dia inteiro", começou por tentar decidir se seria ou não natural com a prima. Procurava decidir se logo de entrada diria alguma coisa inteligente - o que resultaria que durante o dia inteiro ele seria julgado como inteligente. Ou se faria, logo de entrada, algo que ela julgasse "bem comportado", o que faria com que durante o dia inteiro ele seria o bem comportado. Ter a possibilidade de escolher o que seria e, pela primeira vez por um longo dia, fazia-o endireitar os óculos a cada instante.

Aos poucos, durante a semana precedente, o círculo de possibilidades foi se alargando. E, com a capacidade que tinha de suportar a confusão - ele era minucioso e calmo em relação à confusão - terminou descobrindo que até poderia arbitrariamente decidir ser por um dia inteiro um palhaço, por exemplo. Ou que poderia passar esse dia de um modo bem triste, se assim resolvesse. O que o tranqüilizava era saber que a prima, com seu amor sem filhos e sobretudo com a falta de prática de lidar com crianças, aceitaria o modo que ele decidisse de como ela o julgaria. Outra coisa que o ajudava era saber que nada do que ele fosse durante aquele dia iria realmente alterá-lo. Pois prematuramente - tratava-se de criança precoce - era superior à instabilidade alheia e à própria instabilidade. De algum modo pairava acima da própria miopia e da dos outros. O que lhe dava muita liberdade. Às vezes apenas a liberdade de uma incredulidade tranqüila. Mesmo quando se tornou homem, com lentes espessíssimas, nunca chegou a tomar consciência dessa espécie de superioridade que tinha sobre si mesmo.

A semana precedente à visita à prima foi de antecipação contínua. Às vezes seu estômago se apertava apreensivo: é que naquela casa sem meninos ele estaria totalmente à mercê do amor sem seleção de uma mulher. "Amor sem seleção" representava uma estabilidade ameaçadora: seria permanente, e na certa resultaria num único modo de julgar, e isso era a estabilidade. A estabilidade, já então, significava para ele um perigo: se os outros errassem no primeiro passo da estabilidade, o erro se tornaria permanente, sem a vantagem da instabilidade, que é a de uma correção possível.

Outra coisa que o preocupava de antemão era o que faria o dia inteiro na casa da prima, além de comer e ser amado. Bem, sempre haveria a solução de poder de vez em quando ir ao banheiro, o que faria o tempo passar mais depressa. Mas, com a prática de ser amado, já de antemão o constrangia que a prima, uma estranha para ele, encarasse com infinito carinho as suas idas ao banheiro. De um modo geral o mecanismo de sua vida se tornara motivo de ternura. Bem, era também verdade que, quanto a ir ao banheiro, a solução podia ser a de não ir nenhuma vez ao banheiro. Mas não só seria, durante um dia inteiro, irrealizável como - como ele não queria ser julgado "um menino que não vai ao banheiro" - isso também não apresentava vantagem. Sua prima, estabilizada pela permanente vontade de ter filhos, teria, na não ida ao banheiro, uma pista falsa de grande amor.

Durante a semana que precedeu "o dia inteiro", não é que ele sofresse com as próprias tergiversações. Pois o passo que muitos não chegam a dar ele já havia dado: aceitara a incerteza, e lidava com os componentes da incerteza com uma concentração de quem examina através das lentes de um microscópio.

À medida que, durante a semana, as inspirações ligeiramente convulsivas se sucediam, elas foram gradualmente mudando de nível. Abandonou o problema de decidir que elementos daria à prima para que ela por sua vez lhe desse temporariamente a certeza de "quem ele era". Abandonou essas cogitações e passou a previamente querer decidir sobre o cheiro da casa da prima, sobre o tamanho do pequeno quintal onde brincaria, sobre as gavetas que abriria enquanto ela não visse. E finalmente entrou no campo da prima propriamente dita. De que modo devia encarar o amor que a prima tinha por ele?

No entanto, negligenciara um detalhe: a prima tinha um dente de ouro, do lado esquerdo.

E foi isso - ao finalmente entrar na casa da prima foi isso que num só instante desequilibrou toda a construção antecipada.

O resto do dia poderia ter sido chamado de horrível, se o menino tivesse a tendência de pôr as coisas em termos de horrível ou não horrível. Ou poderia se chamar de "deslumbrante", se ele fosse daqueles que esperam que as coisas o sejam ou não.

Houve o dente de ouro, com o qual ele não havia contado. Mas, com a segurança que ele encontrava na idéia de uma imprevisibilidade permanente, tanto que até usava óculos, não se tornou inseguro pelo fato de encontrar logo de início algo que não contara.

Em seguida a surpresa do amor da prima. É que o amor da prima não começou por ser evidente, ao contrário do que ele imaginara. Ela o recebera com uma naturalidade que inicialmente o insultara, mas logo depois não o insultara mais. Ela foi logo dizendo que ia arrumar a casa e que ele podia ir brincando. O que deu ao menino, assim de chofre, um dia inteiro vazio e cheio de sol.

Lá pelas tantas, limpando os óculos, tentou, embora com certa isenção, o golpe da inteligência e fez uma observação sobre as plantas do quintal. Pois quando ele dizia alto uma observação, ele era julgado muito observador. Mas sua fria observação sobre as plantas recebeu em resposta um "pois é", entre vassouradas no chão. Então foi ao banheiro onde resolveu que, já que tudo falhara, ele iria brincar de "não ser julgado": por um dia inteiro ele não seria nada, simplesmente não seria. E abriu a porta num safanão de liberdade.

Mas à medida que o sol subia a pressão delicada do amor da prima foi se fazendo sentir. E quando ele se deu conta, era um amado. Na hora do almoço, a comida foi puro amor errado e estável: sob os olhos ternos da prima, ele se adaptou com curiosidade ao gosto estranho daquela comida, talvez marca de azeite diferente, adaptou-se ao amor de uma mulher, amor novo que não parecia com o amor dos outros adultos: era um amor pedindo realização, pois faltava à prima a gravidez, que já é em si um amor materno realizado. Mas era um amor sem a prévia gravidez. Era um amor pedindo, a posteriori, a concepção. Enfim, o amor impossível.

O dia inteiro o amor exigindo um passado que redimisse o presente e o futuro. O dia inteiro, sem uma palavra, ela exigindo dele que ele tivesse nascido no ventre dela. A prima não queria nada dele, senão isso. Ela queria do menino de óculos que ela não fosse uma mulher sem filhos. Nesse dia, pois, ele conheceu uma das raras formas de estabilidade: a estabilidade do desejo irrealizável. A estabilidade do ideal inatingível. Pela primeira vez, ele, que era um ser votado à moderação, pela primeira vez sentiu-se atraído pelo imoderado: atração pelo extremo impossível. Numa palavra, pelo impossível. E pela primeira vez teve então amor pela paixão.

E foi como se a miopia passasse e ele visse claramente o mundo. O relance mais profundo e simples que teve da espécie de universo em que vivia e onde viveria. Não um relance de pensamento. Foi apenas como se ele tivesse tirado os óculos, e a miopia mesmo é que o fizesse enxergar. Talvez tenha sido a partir de então que pegou um hábito para o resto da vida: cada vez que a confusão aumentava e ele enxergava pouco, tirava os óculos sob o pretexto de limpá-los e, sem óculos, fitava o interlocutor com uma fixidez reverberada de cego.

(Clarice Lispector "A Legião Estrangeira", São Paulo, Ática, 1977)

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