"A literatura tem essa magia de nos tornar contemporâneos de quem quisermos." (Inês Pedrosa)

domingo, 26 de dezembro de 2010

Exaltação da existência

Aqui nada há que lembre ascese, espiritualidade e dever, aqui só nos fala uma opulenta e triunfante existência, onde tudo o que se faz presente é divinizado, não importando se seja bom ou mau. E assim, é possível que o observador fique realmente surpreendido ante essa fantástica exaltação da vida e se pergunte com qual filtro mágico no corpo puderam tais homens exuberantes desfrutar da vida a ponto de se depararem, para onde quer que olhassem, com o riso de Helena – a imagem ideal, “pairando em doce sensualidade”, da própria existência deles.

(Friedrich Nietzsche, in O Nascimento da Tragédia)

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Nossa única liberdade...

"Nossa única liberdade é escolher entre a amargura e o prazer. Sendo nosso quinhão a insignificância de tudo, não devemos tomá-la como uma tara, mas saber nos alegrar com ela. A lberdade? Ao viver a sua miséria, você pode ser feliz ou infeliz. É nessa escolha que consiste sua liberdade. Somos livres para dissolvermos nossa individualidade no caldeirão da multidão com um sentimento de derrota, ou então com euforia."


(Milan Kundera)

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Acordo de súbito

Leonid Afremov
De repente, como se um destino médico me houvesse operado de uma cegueira antiga com grandes resultados súbitos, ergo a cabeça, da minha vida anônima, para o conhecimento claro de como existo. E vejo que tudo quanto tenho feito, tudo quanto tenho pensado, tudo quanto tenho sido, é uma espécie de engano e de loucura. Maravilho-me do que consegui não ver. Estranho quanto fui e que vejo que afinal não sou. 
Olho, como numa extensão ao sol que rompe nuvens, a minha vida passada; e noto, com um pasmo metafísico, como todos os meus gestos mais certos, as minhas idéias mais claras, e os meus propósitos mais lógicos, não foram, afinal, mais que bebedeira nata, loucura natural, grande desconhecimento. Nem sequer representei. Representaram-me. Fui, não o ator mas os gestos dele. 
Tudo quanto tenho feito, pensado, sido, é uma soma de subordinações, ou a um ente falso que julguei meu, por que agi dele para fora, ou de um peso de circunstâncias que supus ser o ar que respirava. Sou, neste momento de ver, um solitário súbito, que se reconhece desterrado onde se encontrou sempre cidadão. No mais íntimo do que pensei não fui eu. 
Vem-me, então, um terror sarcástico da vida, um desalento que passa os limites da minha individualidade consciente. Sei que fui erro e descaminho, que nunca vivi, que existi somente porque enchi tempo com consciência e pensamento. E a minha sensação de mim é a de quem acorda depois de um sono cheio de sonhos reais, ou a de quem é liberto, por um terremoto, da luz pouca do cárcere a que se habituara. 
Pesa-me, realmente me pesa, como uma condenação a conhecer, esta noção repentina da minha individualidade verdadeira, dessa que andou sempre viajando sonolentamente entre o que sente e o que vê. 
É tão difícil descrever o que se sente quando se sente que realmente se existe, e que a alma é uma entidade real, que não sei quais são as palavras humanas com que possa defini-lo. (...) Sim, repito, sou como um viajante que de repente se encontre numa vila estranha, sem saber como ali chegou (grifo meu); e ocorrem-me esses casos dos que perdem a memória, e são outros durante muito tempo. Fui outro durante muito tempo — desde a nascença e a consciência —, e acordo agora no meio da ponte, debruçado sobre o rio, e sabendo que existo mais firmemente do que fui até aqui. Mas a cidade é me incógnita, as ruas novas, e o mal sem cura. Espero, pois, debruçado sobre a ponte, que me passe a verdade, e eu me restabeleça nulo e fictício, inteligente e natural. 
Foi um momento, e já passou. Já vejo os móveis que me cercam, os desenhos do papel velho das paredes, o sol pelas vidraças poeirentas. Vi a verdade um momento. Fui um momento, com consciência, o que os grandes homens são com a vida. Recordo-lhes os atos e as palavras, e não sei se não foram também tentados vencedoramente pelo Demônio da Realidade. Não saber de si é viver. Saber mal de si é pensar. Saber de si, de repente, como neste momento lustral, é ter subitamente a noção da mônada íntima, da palavra mágica da alma. Mas uma luz súbita cresta tudo, consome tudo. Deixa-nos nus até de nós. 
Foi só um momento, e vi-me. Depois já não sei sequer dizer o que fui. E, por fim, tenho sono, porque, não sei porquê, acho que o sentido é dormir. 

(Fernando Pessoa, in Livro do Desassossego)

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

O derradeiro mistério

Edward Hopper
As pessoas cujo desejo é unicamente a auto-realização, nunca sabem para onde se dirigem. Não podem saber. Numa das acepções da palavra, é obviamente necessário, como o oráculo grego afirmava, conhecermo-nos a nós próprios. É a primeira realização do conhecimento. Mas reconhecer que a alma de um homem é incognoscível é a maior proeza da sabedoria. O derradeiro mistério somos nós próprios. Depois de termos pesado o Sol e medido os passos da Lua e delineado minuciosamente os sete céus, estrela a estrela, restamos ainda nós próprios. Quem poderá calcular a órbita da sua própria alma?

(Oscar Wilde, in 'De Profundis')

sábado, 11 de dezembro de 2010

Ilusão

Às vezes, o pensamento mais estranho, mais impossível na aparência, apodera-se de nós com tal poder, que acabamos por julgá-lo realizável... Mais ainda: se a idéia se associa a um desejo violento, apaixonado, tomamo-la às vezes, no fim das contas, por algo fatal, inelutável, predestinado. Talvez haja aí, também, um não sei quê, uma combinação de pressentimentos, um esforço extraordinário de vontade, uma intoxicação por sua própria fantasia...

(Fiodor Dostoiévski, in O Jogador)

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

O Livro


Dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso é, indubitavelmente, o livro. Os outros são extensões do seu corpo. O microscópio e o telescópio são extensões da vista; o telefone é o prolongamento da voz; seguem-se o arado e a espada, extensões do seu braço. Mas o livro é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação.  Em «César e Cleópatra» de Shaw, quando se fala da biblioteca de Alexandria, diz-se que ela é a memória da humanidade. O livro é isso e também algo mais: a imaginação. Pois o que é o nosso passado senão uma série de sonhos? Que diferença pode haver entre recordar sonhos e recordar o passado? Tal é a função que o livro realiza. (...) Se lemos um livro antigo, é como se lêssemos todo o tempo que transcorreu até nós desde o dia em que ele foi escrito. Por isso convém manter o culto do livro. O livro pode estar cheio de coisas erradas, podemos não estar de acordo com as opiniões do autor, mas mesmo assim conserva alguma coisa de sagrado, algo de divino, não para ser objecto de respeito supersticioso, mas para que o abordemos com o desejo de encontrar felicidade, de encontrar sabedoria. 

(Jorge Luís Borges, in 'Ensaio: O Livro')

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Demônios Míticos

Hieronymus Bosch
Na política, vivemos o tempo todo sobre o solo vulcânico. Devemos estar preparados para convulsões e erupções abruptas. Em todos os momentos críticos da vida social, as forças racionais que resistem à ascensão das antigas concepções míticas já não estão seguras de si mesmas. Nesses momentos é chegada, uma vez mais, a hora do mito. Pois o mito não foi realmente vencido e subjugado. Ele está sempre a espreita, na sombra, esperando sua hora e oportunidade. Esse momento chega quando as demais forças coesoras da vida social, por uma razão ou pro outra, perdem sua força e já não são capazes de combates os demoníacos poderes míticos.

(Ernest Cassierer, The Myth of the State, 1946)

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

A desgraça do sonhador

E vocês sabem o que é um sonhador, cavalheiros? É um pecado personificado, uma tragédia misteriosa, escura e selvagem, com todos os seus horrores frenéticos, catástrofes, devaneios e fins infelizes... um sonhador é sempre um tipo difícil de pessoa porque ele é enormemente imprevisível: umas vezes muito alegre, às vezes muito triste, às vezes rude, noutras muito compreensivo e enternecedor, num momento um egoísta e noutro capaz dos mais honoráveis sentimentos... não é uma vida assim uma tragédia? Não é isto um pecado, um horror? Não é uma caricatura? E não somos todos mais ou menos sonhadores? 


(Fiodor Dostoievski)

domingo, 5 de dezembro de 2010

Cidadezinha Qualquer

Narni Corot
CIDADEZINHA QUALQUER
1967 - JOSÉ & OUTROS 


Casas entre bananeiras 
mulheres entre laranjeiras 
pomar amor cantar. 

Um homem vai devagar. 
Um cachorro vai devagar. 
Um burro vai devagar. 
Devagar ... as janelas olham. 

Eta vida besta, meu Deus. 



(Carlos Drummond de Andrade)
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