"A literatura tem essa magia de nos tornar contemporâneos de quem quisermos." (Inês Pedrosa)

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Esperança














Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E
— ó delicioso vôo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...


[Mário Quintana]

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Cosmos e a Ciência

Precisamos abraçar os ensinamentos de uma nova visão científica do mundo, onde o poder criativo da Natureza reside nas suas imperfeições, e não na sua perfeição; onde a vida, e mesmo a nossa existência, é frágil e preciosa. Dentro dessa nova visão, nosso conhecimento do mundo será sempre limitado. Não existe uma Teoria Final, apenas uma descrição cada vez mais precisa da realidade em que vivemos. 

Sei que a transição não será fácil. Teremos que confrontar com humildade a verdadeira dimensão da nossa existência, num cosmos indiferente à nossa presença. Por sermos pequenos e frágeis, somos únicos e preciosos, agregados raros de átomos inanimados capazes de reflexão. Em apenas alguns milênios, nos desenvolvemos a ponto de hoje mudar o curso da história do nosso planeta e, portanto, o da nossa também. A coexistência do nosso poder destrutivo com a fragilidade do nosso planeta é precária. A humanidade encontra-se numa encruzilhada. As decisões que tomaremos nas próximas décadas definirão o futuro da nossa espécie e o da nossa casa planetária. Apesar de a estrada ser longa, o primeiro passo é simples: entender que nada é mais importante do que a preservação da vida. 

(Marcelo Gleiser "A Criação Imperfeita")

domingo, 18 de dezembro de 2011

A Justiça é o pão do povo

















A justiça é o pão do povo.
Às vezes bastante, às vezes pouca.
Às vezes de gosto bom, às vezes de gosto ruim.
Quando o pão é pouco, há fome.
Quando o pão é ruim, há descontentamento.

Fora com a justiça ruim!
Cozida sem amor, amassada sem saber!
A justiça sem sabor, cuja casca é cinzenta!
A justiça de ontem, que chega tarde demais!
Quando o pão é bom e bastante
O resto da refeição pode ser perdoado.
Não pode haver logo tudo em abundância.
Alimentado do pão da justiça
Pode ser feito o trabalho
De que resulta a abundância.

Como é necessário o pão diário
É necessária a justiça diária.
Sim, mesmo várias vezes ao dia.



(Bertolt Brecht)

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Navegar é preciso...


"Ficamos, pois, cada um entregue a si próprio, na desolação de sentir viver. Um barco parece ser um objecto cujo fim é navegar; mas o seu fim não é navegar, senão chegar a um porto. Nós encontramo-nos navegando, sem a ideia do porto a que nos deveríamos acolher. Reproduzimos assim, na espécie dolorosa, a fórmula aventureira dos argonautas: navegar é preciso, viver não é preciso."

(Fernando Pessoa "Livro do Desassossego")

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Eterna Criança


Com a força do seu olhar intelectual e da sua penetração espiritual cresce a distância e, de certo modo, o espaço que circunda o homem: o seu mundo torna-se mais profundo, avistam-se continuamente estrelas novas, imagens novas e novos enigmas. Talvez tudo aquilo em que o olhar do espírito exercitou a sua sagacidade e profundeza tenha sido apenas um pretexto para este exercício, um jogo e uma criancice e infantilidade. E talvez um dia os conceitos mais solenes, os que provocaram maiores lutas e maiores sofrimentos, os conceitos de «Deus» e do «pecado», não signifiquem, para nós, mais do que um brinquedo e um desporto de criança significam para um velho, - e talvez o «velho homem» tenha, então, necessidade de um outro brinquedo ainda e de um outro desgosto, - por continuar a ser muito criança, eterna criança!

- Friedrich Nietzsche,
Para Além de Bem e Mal

domingo, 4 de dezembro de 2011

A Boa Nova

H. Bosch - Temptation of Saint Anthony
À entrada estão os levitas à espera dos que vêm oferecer sacrifícios, porém neste lugar a atmosfera será tudo menos piedosa, salvo se a pidade era então compreendida doutra maneira, não é só o cheiro e o fumo das gorduras estorricadas, do sangue fresco, do incenso, é também o vozear dos homens, os berros, os balidos, os mugidos dos animais que esperam vez no matadouro, o último e áspero grasnido duma ave que antes soubera cantar. Maria diz ao levita que os atendeu que vem para a purificação e José entrega as rolas. (...)

Lá dentro é uma forja, um talho e um matadouro. Em cima de duas grandes mesas de pedra prepara-se as vítimas de maiores dimensões, os bois e os vitelos, sobre-tudo, mas também carneiros e ovelhas, cabras e bodes. Perto das mesas encontram-se uns altos pilares onde se dependuram, em ganchos chumbado na pedra, as carcaças das reses e vê-se a frenética actividade do arsenal dos açougues, as facas, os cutelos, o machados, os serrotes, a atmosfera está carregada dos fumos da lenha e dos coiratos queimados, de vapor de sangue e de suor, uma alma qualquer, que nem precisará ser santa, das vulgares, terá dificuldade em entender como poderá Deus sentir-se feliz em meio de tal carnificina, sendo, como diz que é, pai comum dos homens e das bestas. (...)
Ninguém dá atenção ao que se passa, é apenas uma pequena morte. José, de cabeça levantada, quereria perceber, identificar, entre o fumo geral e os cheiros gerais, o fumo e o cheiro do seu sacrificio, quando o sacerdote, depois de salgar a cabeça e o corpo da ave, os atirar à fogueira.

(José Saramago "O Evangelho Segundo Jesus Cristo")

domingo, 27 de novembro de 2011

Amor Fati

Leonid Afremov

"... vou dizer qual é o pensamento que deve tornar-se a razão, a garantia e a doçura de toda a minha vida! É aprender cada vez mais a ver o belo na necessidade das coisas: é assim que serei sempre daqueles que tornam as coisas belas. Amor fati: seja esse de agora em diante o meu amor. Não quero fazer guerra ao feio. Nâo quero acusar nem mesmo os acusadores. Desviarei o meu olhar, será essa, de ora em diante, a minha única negação! E, numa palavra final, não quero, a partir de hoje, ser outra coisa senão um afirmador."

- Friedrich Nietzsche

terça-feira, 15 de novembro de 2011

A Ilusão da Liberdade

A experiência faz ver, portanto, tão claramente como a razão, que os homens se julgam livres apenas porque são conscientes das suas ações e ignorantes das causas pelas quais são determinados; e, além do mais, que as decisões da alma nada mais são que os próprios apetites, e, por conseguinte, variam conforme as várias disposições do corpo. Cada um, como efeito, governa tudo segundo a sua afecção própria. 


(Spinoza in "Ética, III)

domingo, 13 de novembro de 2011

Meu Coração

Edvard Munch
Meu coração de pedra
Meu coração de aço
Atrofiou sofridamente
Como coração de gato

Sete vezes morre
Oito vezes nasce
Silenciosamente
Sobrevive no vácuo

Na contradição da vontade
A chuva é escassa
Eis a verdade

Os amores já morreram,
Da coração saudável
Só restou a saudade.

(John Bernard Calvin)

sábado, 5 de novembro de 2011

O Silêncio


"Daí que as palavras sejam instrumento de morte - ou de salvação. Daí que a palavra só valha o que valer o silêncio do ato. Há também o silêncio. O silêncio, por definição, é o que não se ouve. O silêncio escuta, examina, observa, pesa e analisa. O silêncio é fecundo. O silêncio é a terra negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calada sob a luz solar. Caem sobre ele as palavras. Todas as palavras. As palavras boas e as más."

(José Saramago “As Palavras”, 1968)

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Arrogância


A arrogância não é nenhum meio adequado para se chegar a qualquer forma de entendimento com as pessoas que nos rodeiam e que menosprezamos, pelo que nos são insuportáveis. Mas, se não tivéssemos a arrogância, estaríamos perdidos, pois ela não é senão um meio de impormos a nossa vontade contra um mundo que de outro modo é, portanto, sem essa arrogância, nos devoraria por completo. Ele não teria por nós o mínimo respeito. Nós temos de a ele nos antecipar com a nossa própria arrogância, empregá-la onde ela nos salva de sermos devorados.


(Thomas Bernhard)

domingo, 23 de outubro de 2011

Da vitória sobre si mesmo


É preciso que eu seja luta e sucesso e fim e contradição dos fins. Ai! Aquele que advinha minha vontade advinha também os caminhos tortuosos que precisa seguir. Seja qual for a coisa que eu crie e o amor que lhe tenha em breve devo ser seu adversário e o adversário do meu amor: assim o quer a minha vontade.

E tu também, investigador, não és mais do que a senda e a pista da minha vontade: a minha vontade de potencia segue também as pegadas da tua vontade de verdade.

Certamente não encontrou verdade aquele que falava da vontade de existir; não há tal vontade. Porque o que não existe não pode querer; mas como poderia o que existe ainda desejar a existência! Só onde há vida há vontade; não vontade de vida, mas como eu ensino, vontade de potência. Há muitas coisas que o vivente aprecia mais do que a vida; mas nas próprias apreciações fala a vontade de potência. 



 (Friedrich Nietzsche in 'Assim Falou Zaratustra')

"A vontade é impotente perante o que está por trás dela. Não pode destruir o tempo, nem a avidez transbordante do tempo, é a angústia mais solitária da vontade."


(Friedrich Nietzsche)

sábado, 22 de outubro de 2011

Dias Irreconhecíveis


"Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano. "Quem sou eu no mundo"? Essa indagação perplexa é o lugar-comum da cada história de gente. Quantas vezes mais decifrares essa charada, tão emaranhada em ti mesma como os seus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta."

 (Paulo Mendes Campos)

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Sábios?

Já não sou um sábio para as ovelhas : assim o quer a minha sorte. Bendita seja! Porque é esta a verdade: saí da casa dos sábios atirando com a porta. Demasiado tempo esteve a minha alma faminta sentada à sua mesa; eu não estou assim como eles, adestrado para o conhecimento como para descascar nozes. 

Amo a liberdade e o ar na terra fresca; e até me agrada mais dormir em peles de bois do que nas suas honrarias e dignidades. Sou ardente demais e estou demasiado consumido pelos próprios pensamentos; falta-me com frequência a respiração; então necessito procurar ar livre e sair de todos os compartimentos empoeirados. 

Eles, porém, estão sentados muito frescos à sombra: em parte alguma querem passar de espectadores, e guardam-se bem de se sentar onde o sol caldeia os degraus. Com os que se postam no meio da rua a olhar de boca aberta quem passa, assim eles aguardam de boca aberta os pensamentos dos outros. (...) Se dão mostras de sábios, horrorizam-me com suas pequenas sentenças e verdades: a sua sabedoria cheira amiúde como se saísse de um pântano, e indubitavelmente já nele ouvi cantar rãs. 

(Friedrich Nietzsche "Assim Falou Zaratustra)

sábado, 15 de outubro de 2011

Uma perspectiva crítica em psicologia

"'Uma outra vez quis saltar por um brejo mas, quando me encontrava a meio caminho, percebi que era maior do que imaginara antes. Puxei as rédeas no meio do meu salto, e retornei à margem que acabara de deixar, para tomar mais impulso. Outra vez me saí mal e afundei no brejo até o pescoço. Eu certamente teria perecido se, pela força de meu próprio braço, não tivesse puxado pelo meu próprio cabelo preso em rabicho, a mim e a meu cavalo que segurava fortemente entre os joelhos.' (Barão de Munchhausen - Raspe, s/data p. 40).

É essa a melhor imagem que encontramos para designar a ideologia do esforço próprio de cada um para desenvolver a si mesmo e ao potencial contido em sua natureza. 

Assim, há anos a Psicologia tem contribuído para responsabilizar os sujeitos por seus sucessos e fracassos... A Psicologia não tem sido capaz de, ao falar do fenômeno psicológico, falar de vida, das condições econômicas, sociais e culturais nas quais se inserem os homens. A Psicologia tem, ao contrário, contribuído significativamente para ocultar essas condições. Fala-se da mãe e do pai sem falar da família como instituição social marcada historicamente pela apropriação dos sujeitos; fala-se da sexualidade sem falar da tradição judaico-cristã de repressão a sexualidade; fala-se da identidade das mulheres sem se falar das características machistas de nossa cultura; fala-se do corpo sem inseri-lo na cultura; fala-se de habilidade e aptidões de um sujeito sem falar das suas reais possibilidades de acesso à cultura; fala-se do homem sem falar do trabalho; fala-se do psicológico sem falar do cultural e do social. Na verdade, não se fala de nada. Faz-se ideologia."

(Ana Mercês Bahia Bock)


quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Consciência e Revolta


Kirchner

"A forma mais baixa que podemos conceber do universo de homens é aquela a que Heidegger chamou do mundo do "man", mundo em que nos deixamos aglomerar quando renunciamos a ser pessoas lúcidas e responsáveis; mundo da consciência sonolenta, dos instintos anônimos, das relações mundanas, de quotidiano, do conformismo social ou político, da mediocridade moral, da multidão, das massas anônimas, das organizações irresponsáveis. Mundo sem vitalidade e desolado, onde cada pessoa renunciou provisoriamente a sê-lo, para se transformar num qualquer, não interessa quem, de qualquer forma. O mundo do não constitui, nem um nós, nem um todo. Não está ligado a esta ou aquela forma social, antes é em todas elas uma maneira de ser. O primeiro ato duma vida pessoal é a tomada de consciência dessa vida anônima e a revolta contra a degradação que representa."

(Emmanuel Mounier)

domingo, 9 de outubro de 2011

Intervalo Doloroso


"Tudo me cansa, mesmo o que não me cansa. A minha alegria é tão dolorosa como a minha dor.
Quem me dera ser uma criança pondo barcos de papel num tanque de quinta, com um dossel rústico de entrelaçamentos de parreira pondo xadrezes de luz e sombra verde nos reflexos sombrios da pouca água.

Entre mim e a vida há um vidro ténue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não posso lhe tocar.

Raciocinar a minha tristeza? Para quê, se o raciocínio é um esforço? e quem é triste não pode esforçar-se. Nem mesmo abdico daqueles gestos banais da vida de que eu tanto quereria abdicar. Abdicar é um esforço, e eu não possuo o de alma com que esforçar-me.

Quantas vezes me punge o não ser o manobrante daquele carro, o cocheiro daquele trem! qualquer banal Outro suposto cuja vida, por não ser minha, deliciosamente se me penetra de eu querê-la e se me penetra até de alheia!

Eu não teria o horror à vida como a uma Coisa. A noção da vida como um Todo não me esmagaria os ombros do pensamento.

Os meus sonhos são um refúgio estúpido, como um guarda chuva contra um raio.
Sou tão inerte, tão pobrezinho, tão falho de gestos e actos.

Por mais que por mim me embrenhe, todos os atalhos do meu sonho vão dar a clareiras de angústia.
Mesmo eu , o que sonha tanto, tenho intervalos em que o sonho me foge. Então as coisas aparecem-me nítidas. Esvai-se a névoa de quem me cerco. E todas as arestas visíveis ferem a carne da minha alma. Todas as durezas olhadas me magoam o conhêce-las durezas. Todos os pesos visíveis de objectos me pesam por a alma dentro.

A minha vida é como se me batessem com ela."

(Fernando Pessoa "Livro do Desassossego")

Tolerância


Edvard Munch
"Tolerar a existência do outro e permitir que ele seja diferente, ainda é muito pouco. Quando se tolera, apenas se concede, e essa não é uma relação de igualdade, mas de superioridade de um sobre o outro".

(José Saramago)

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Bebida milenar














"Olho em redor do bar em que escrevo estas linhas. 


Aquele homem ali no balcão, caninha após caninha, 
nem desconfia que se acha conosco desde o início 
das eras. Pensa que está somente afogando problemas 
dele, João Silva... Ele está é bebendo a milenar 
inquietação do mundo!"



(Mário Quintana)



sábado, 24 de setembro de 2011

Ideamorização


"Os modos de pensar como o amor, o desejo ou qualquer outro sentimento da alma, qualquer que seja o nome por que é designado, não podem existir num indivíduo senão enquanto se verifica nesse indivíduo uma ideia da coisa amada, desejada, etc."

(Spinoza in "Ética")

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Narcisimo?


Amamos as pessoas que reforçam os comportamentos que já são para nós prazerosos e que constituem nossa identidade, isto é, no fundo amamos somente a nós mesmos.

(Alan Teixeira)

sábado, 10 de setembro de 2011

A Dupla Existência da Verdade


Leonid Afremov

Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se haviam zangado um com o outro. Cada um me contou a narrativa de por que se haviam zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas razões. Ambos tinham razão. Ambos tinham toda a razão. Não era que um via uma coisa e outro outra, ou que um via um lado das coisas e outro lado diferente. Não: cada um via as coisas exatamente como se haviam passado, cada um as via com um critério idêntico ao outro, mas cada um via uma coisa diferente, e cada um, portanto, tinha razão. Fiquei confuso desta dupla existência da verdade.


(Fernando Pessoa)

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

A Consciência Intelectual


Vladimir Kush
A consciência intelectual - Acabo de refazer a experiência e de rebelar contra ela, não posso acreditar, ainda que me seja evidente: falta consciência intelectual a grande maioria das pessoas; pareceu-me, frequentemente, que quando alguém a possuía, nas mais populosas cidades, estava tão só como no deserto. Todos olham para nós como se fôssemos estrangeiros e continuam a fazer uso da sua balança, dizendo que isto é bom, que aquilo é mau; ninguém enrubesce de vergonha quando deixa perceber que os seus pesos não são justos; ninguém se indigna contra vós: talvez riam das vossas dúvidas... os homens mais dotados e as mulheres mais nobres também fazem parte desse grande número. Que me importam bondade, finura e gênio, se o homem que possui essas virtudes tolera no seu coração a mornice da fé, do juízo, se a exigência da certeza não é o seu mais profundo desejo, a sua mais íntima necessidade!

(Friedrich Nietzsche, in "Gaia Ciência")

domingo, 4 de setembro de 2011

Não existe gente grande



"Não existe gente grande. Existem apenas crianças que fazem de conta que cresceram, ou que de fato cresceram sem no entanto acreditar plenamente nisso, sem conseguir apagar a criança que foram, que continuam sendo, apesar das mudanças, que carregam consigo como um segredo, ou que as carrega... Ser adulto é ser um coadjuvante."

(André Comte Sponville)

domingo, 28 de agosto de 2011

Mais vale uma verdadeira tristeza

A felicidade é a meta; a verdade é o caminho ou a norma. Isso significa que, se o filósofo puder optar entre uma verdade e uma felicidade - felizmente, o problema nem sempre se coloca nesses termos, só às vezes -, se o filósofo puder optar entre uma verdade e uma felicidade, ele só será filósofo, ou só será digno de sê-lo, se optar pela verdade. Mais vale uma verdadeira tristeza do que uma falsa alegria. 


(André Comte Sponville 
"A felicidade, desesperadamente")

sábado, 20 de agosto de 2011

Morre lentamente...


"Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz com o seu trabalho, quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho, quem não se permite pelo menos uma vez na vida, fugir dos conselhos sensatos; Morre lentamente quem não viaja, quem não lê, quem não ouve música, quem não encontra graça em si mesmo..."

(Pablo Neruda)


quinta-feira, 18 de agosto de 2011

A lenta flecha da beleza

Leonid Afremov
O tipo de beleza mais nobre é aquele que não arrebata de repente, que não faz ataques impetuosos e inebriantes (esse provoca com facilidade o tédio), mas que se insinua lentamente, que se carrega consigo quase sem saber e que um dia, em sonho, se redescobre, mas que, por fim, apos ter ficado modestamente em nosso coração, toma posse completa de nós, enche nossos olhos de lágrimas e nosso coração de desejo. 

(Friedrich Nietzsche in 'Humano, demasiado humano)

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

O centro voante do mundo


Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um sem-número de sistemas solares, havia uma vez um astro, onde animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da ‘história universal’: mas também foi somente um minuto. Passados poucos fôlegos da natureza congelou-se o astro, e os animais inteligentes tiveram de morrer. – Assim poderia alguém inventar uma fábula e nem por isso teria ilustrado suficientemente quão lamentável, quão fantasmagórico e fugaz, quão sem finalidade e gratuito fica o intelecto humano dentro da natureza. Houve eternidades em que ele não estava; quando de novo ele tiver passado, nada terá acontecido. Pois não há para aquele intelecto nenhuma missão mais vasta que conduzisse além da vida humana. Ao contrário, ele é humano, e somente seu possuidor e genitor o toma tão pateticamente, como se os gonzos do mundo girassem nele. Mas se pudéssemos entender-nos com a mosca, perceberíamos então que também ela bóia no ar com esse páthos e sente em si o centro voante deste mundo. Não há nada tão desprezível e mesquinho na natureza que, com um pequeno sopro daquela força do conhecimento, não transbordasse logo um odre; e como todo transportador de carga quer ter seu admirador, mesmo o mais orgulhoso dos homens, o filósofo, pensa ver por todos os lados os olhos do universo telescopicamente em mira sobre seu agir e pensar. É notável que o intelecto seja capaz isso, justamente ele, que foi concedido apenas como meio auxiliar aos mais infelizes, delicados e perecíveis dos seres, para firmá-los um minuto na existência (...)

(Friedrich Nietzsche 'Sobre a verdade e a mentira em sentido extra-moral')

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Quase fui feliz

Ben Gossens
Por uma estranha alquimia
(você e outros elementos)
quase fui feliz um dia.
Não tinha nem fundamento.
Havia só a magia
dos seus aparecimentos
e a música que eu ouvia
e um perfume no vento.
Quase fui feliz um dia.
Lembrar é quase promessa,
é quase quase alegria.
Quase fui feliz à beça
mas você só me dizia:
“Meu amor, vem cá, sai dessa”.


(Antônio Cícero)

sábado, 30 de julho de 2011

Consolo na praia

















Vamos, não chores

A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.


O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.


Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas tens um cão.


Algumas palavras duras.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.


Tudo somado, devias
precipitar-te - de vez - nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.


(Carlos Drummond de Andrade)

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Felicidade Clandestina

"Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreesões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria - e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa."

(Felicidade Clandestina - Clarice Lispector)

terça-feira, 26 de julho de 2011

Há metafísica bastante em não pensar...


Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que idéia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?

Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?

"Constituição íntima das cousas"...
"Sentido íntimo do Universo"...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.


(Alberto Caeiro)



(Fernando Pessoa)

domingo, 24 de julho de 2011

Perto da terra

O homem é um ser inteligente, sem dúvida, mas não tanto quanto seria desejável, e esta é uma verificação e confissão de humildade que sempre deverá começar por nós próprios, como da caridade bem compreendida se diz, antes que nos atirem à cara.

(José Saramago in "A Jangada de Pedra")

sábado, 23 de julho de 2011

Multi-humanidade

Edvard Munch

Nenhum povo poderia viver sem avaliar; mas, para se conservar, não deve avaliar como o seu vizinho. Muitas coisas que um povo chamava boas eram para outros vergonhosas e desprezíveis; foi o que vi. Muitas coisas, aqui qualificadas de más, em outro lugar as enfeitavam com o manto de púrpura das honrarias. Nunca um vizinho compreendeu o outro; sempre a sua alma se assombrou da loucura e da maldade do vizinho. Sobre cada povo está suspensa uma tábua de bens. E vede: é a tabua dos triunfos dos seus esforços; é a voz da sua vontade de potência. (...)
A verdade é que os homens deram a si mesmos todo o seu bem e todo o seu mal. A verdade é que não o tomaram, que o não encontraram, que não lhes caiu como uma voz do céu. O homem é que pôs valores nas coisas com a intenção de conservar; foi ele que deu um sentido às coisas, um sentido humano. Por isso se chama 'homem', isto é, o que avalia. (...)

Muitos países e muitos povos viu Zaratustra. Não encontrou poder maior na terra que a obra dos amantes; 'bem' e 'mal' é o seu nome.

Até o momento tem havido mil objetos, porque tem havido mil povos. Só falta a cadeia das mil cervizes: falta o único objeto. A humanidade não tem objeto. Mas dizei-me, irmãos: se falta objeto à humanidade, não é porque ela mesma ainda não existe?

(Friedrich Nietzsche in 'Assim Falou Zaratustra')

sexta-feira, 22 de julho de 2011

O perigo dos hábitos

Salvador Dalí "Cannibal"

A tirania é um hábito, tem a propriedade de se desenvolver, e se dilata a tal ponto que acaba virando doença. Assevero que o melhor dos homens pode, com o hábito, acabar se transformando num animal feroz. Sangue e poder estonteiam, em geral desenvolvem a brutalidade e a perversão; o espírito e o sentimento se tornam pasto de prazeres esdrúxulos. O homem e o cidadão deixam de coexistir, surgindo então apenas o tirano e a volta ao estado de homem e cidadão se torna de todo impossível, não havendo mais consciência nem arrependimento e sim voracidade e delícia. Daí o perigo da possibilidade de um idêntico despotismo contagiar a sociedade; esse poder é infinito. Uma sociedade que se afaz a tais conjunturas já está corroída até o âmago.

(Fiodor Dostoievski, Recordações da Casa dos Mortos)

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Nossos vícios

Devemos encarar com tolerância toda loucura, fracasso e vício dos outros, sabendo que encaramos apenas nossa própria loucura, fracasso e vício. Pois eles são os fracassos da humanidade à qual também pertencemos e assim temos os mesmos fracassos em nós. Não devemos nos indignar com os outros por esses vícios apenas por não aparecerem em nós naquele momento. 

(Arthur Schopenhauer)

domingo, 17 de julho de 2011

Desafio Literário

Respondendo o caro Bento Sales do blog Folhas Soltas que me mandou esse desafio que vou responder  em seguida,  porém, antes quero lhe agradecer  pelo respeito, consideração e amizade de sempre: muitíssimo obrigado!

Então ,vamos lá!



1 - Existe um livro que você leria e releria várias vezes?

Sim.  Assim Falou Zaratustra, de Friedrich Nietzsche


2 - Existe um livro que você começou a ler, parou, recomeçou, tentou e tentou, mas nunca conseguiu ler até o final?
Sim, Cem Anos de Solidão. Já comecei, recomecei e nunca terminei.

3 - Se você escolhesse um livro para ler para o resto da sua vida, qual seria ele?
Livro do Desassossego, Fernando Pessoa.


4 - Que livro você gostaria de ter lido, mas que, por algum motivo, nunca leu?

Fausto, de Goethe. Por falta de insistência no estilo poético e sua linguagem, digamos, difícil de digerir.



5 - Qual livro que você leu cuja "cena final" você jamais conseguiu esquecer?

Ensaio Sobre a Cegueira, José Saramago. O livro inteira é uma tela, mas a cena final descrevendo as ruínas da civilização jamais vou esquecer.




6 - Você tinha o hábito de ler quando criança? Se lia, qual tipo de leitura?
Sim e não. Quando criança devorava histórias em quadrinhos, Asterix e Obelix, Calvin e Haroldo e tantos outros... mas fiz uma longa pausa até voltar no fim da adolescência. 


7 - Qual o livro que você achou chato, mas ainda assim o leu até o final?
A Náusea, de Sartre. Como obra filosófica é excelente e indescritível, mas como literatura é maçante.

8 - Indique alguns dos seus livros favoritos.

As Intermitências da Morte, Saramago; 
Ensaio Sobre a Cegueira, Saramago; 
Ensaio Sobre a Lucidez, Saramago; 
Assim Falou Zaratustra, Nietzsche; 
Admirável Mundo Novo, Huxley; 
A Revolução dos Bichos, George Orwell; 
Elogio da Loucura, Erasmo de Roterdam; 
O Mito de Sisifo, Camus; 
Livro do Desassossego, Fernando Pessoa; 
A Rua dos Cataventos, Mário Quintana;
Sentimento do Mundo, Drummond; 
O Castelo, Franz Kafka; 
Hamlet, Shakespeare; 
O Alienista, Machado de Assis; 
Pais e Filhos, Turgueniev e 

Quando Nietzsche Chorou. 




9 - Qual livro você está lendo no momento?

A Cura de Schopenhauer, Irvin Yalon e a A Grande História da Evolução, Richard Dawkins.

Agora tenho de indicar 5 blogs para o desafio.

Sabor da Letra, de Evando Oliveira.
E Versos de Fogo de William Garibalde

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