"A literatura tem essa magia de nos tornar contemporâneos de quem quisermos." (Inês Pedrosa)

sábado, 26 de março de 2011

Minha Moral: não fazer bem nem mal

Tenho uma moral muito simples - não fazer a ninguém nem mal nem bem. Não fazer a ninguém mal, porque não só reconheço nos outros o mesmo direito que julgo que me cabe, de que não me incomodem, mas acho que bastam os males naturais para mal que tenha de haver no mundo. Vivemos todos, neste mundo, a bordo de um navio saído de um porto que desconhecemos para um porto que ignoramos; devemos ter uns para os outros uma amabilidade de viagem. Não fazer bem porque não se o que é o bem, nem se o faço quando julgo que o faço. Sei eu que males produzo se dou esmola? Sei que males produzo se educo ou instruo? Na dúvida, abstenho-me. E acho, ainda, que auxiliar ou esclarecer é, em certo modo, fazer o mal de intervir na vida alheia. A bondade é um capricho temperamental: não temos o direito de fazer os outros vítimas de nossos caprichos, ainda que de humanidade ou ternura. Os benefícios são coisas que se infligem; por isso os abomino friamente. 

Se não faço o bem, por moral, também não exijo que mo façam. Se adoeço, o que me pesa é que obriga alguém a tratar-me, coisa que repugnaria de fazer a outrem. Nunca visistei um amigo. Sempre que, tendo eu adoecido, me visitaram, sofri cada visita como um incomodo, um insulto, uma violação injustificável da minha intimidade decisiva. Não gosto que me dêem coisas; parecem com isso obrigar-me a que as dê também - aos mesmos ou a outros, seja a quem for.

... Tenho para com tudo que existe uma ternura visual, um carinho da inteligência - nada no coração. Não tenho fé em nada, esperança de nada, caridade para nada. 

É esta a minha moral, ou a minha metafísica, ou eu: Transeunte de tudo - até de minha própria alma -, não pertenço a nada, não desejo nada, não sou nada - centro abstracto de sensações impessoais, espelho caído sentiente virado para a variedade do mundo. Com isto, não sei se sou feliz ou infeliz; nem me importa. 

(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego)

quarta-feira, 23 de março de 2011

A Loucura dos Modernos

... a existência humana é às vezes, para não dizer sempre, trágica, no sentido de o infortúnio acontecer sem que possamos lhe dar um sentido. É um erro querer a todo custo esquecer disso. Hoje em dia, assim que o mal injustamente se abate sobre nós, de imediato cedemos à mania moderna que consiste em procurar "os responsáveis". Um rio transborda e afoga pessoas que acampavam? É claro, a culpa é do prefeito, do governador, do ministro, que são no mínimo incompetentes, para não dizer criminosos! Um avião? Vamos rápido abrir um processo para identificar os culpados e levá-los ao pelourinho. Seja um telhado de escola que afunda, uma tempestade que arranca árvores, um túnel que se incendeia, queremos a todo custo uma explicação humana, um erro moral para urgentemente estigmatizá-la. Vamos falar com franqueza: nessa atitude é que melhor se enxerga a loucura dos modernos. 

... o humanismo de que eu gosto e defendo em outras situações se tornou tão onipresente e estamos, nós seres humanos, tão convencidos de sermos os senhores absolutos do mundo, os donos de todos os poderes, que insensivelmente, sem sequer pensar, achamos que temos controle sobre tudo, inclusive as forças naturais, as catástrofes e os acidentes! Isso, no entanto, é puro delírio, no sentido próprio do termo: denegação realidade. 

(Luc Ferry, A Sabedoria dos Mitos Gregos)

domingo, 20 de março de 2011

Ao Espelho

Por que persistes, incessante espelho?
Por que repetes, misterioso irmão,
O menor movimento de minha mão?
Por que na sombra o súbito reflexo?

És o outro eu sobre o qual fala o grego
E desde sempre espreitas. Na brunidura
Da água incerta ou do cristal que dura
Me buscas e é inútil estar cego.

O fato de não te ver e saber-te
Te agrega horror, coisa de magia que ousas
Multiplicar a cifra dessas coisas

Que somos e que abarcam nossa sorte.
Quando eu estiver morto, copiarás outro
E depois outro, e outro, e outro, e outro…



(Jorge Luís Borges)

quarta-feira, 16 de março de 2011

Afortunados

Nós vamos morrer, e isso nos torna afortunados. A maioria das pessoas nunca vai morrer, porque nunca vai nascer. As pessoas potenciais que poderiam estar no meu lugar, mas que jamais verão a luz do dia, são mais numerosas que os grãos de areia da Arábia. Certamente esses fantasmas não nascidos incluem poetas maiores que Keats, cientistas maiores que Newton. Sabemos disso porque o conjunto das pessoas possíveis permitidas pelo nosso DNA excede em muito o conjunto de pessoas reais. Apesar dessas probabilidades assombrosas, somos eu e você, com toda a nossa banalidade, que aqui estamos…

(Richard Dawkins,  Deus, um delírio)

domingo, 13 de março de 2011

A solidão desola-me; a companhia oprime-me...

Edvard Munch
Para compreender, destruí-me. Compreender é esquecer de amar. Nada conheço mais ao mesmo tempo falso e significativo do que aquele dito de Leonardo da Vinci de que se não pode amar ou odiar uma coisa senão depois de compreendê-la.

A solidão desola-me; a companhia oprime-me. A presença de outra pessoa descaminha-me os pensamentos; sonho a sua presença com uma distracção especial, que toda a minha atenção analítica  não consegue definir.

(Fernando Pessoa in 'Livro do Desassossego)

quinta-feira, 10 de março de 2011

Autoridades Anônimas

Erich Fromm observou que hoje em dia as pessoas deixaram de viver sob a autoridade da igreja ou das leis morais, mas submetem-se a "autoridades anônimas", como a opinião pública. A autoridade é o próprio público, mas esse público é uma simples reunião de indivíduos, cada qual com seu radar ligado para descobrir o que os outros dele esperam. 

(Rollo May, in 'O homem à procura de si mesmo)

terça-feira, 8 de março de 2011

Honrar a Arte


Kant jugou honrar a arte, quando, entre os predicados da beleza, fez ressaltar os que constituem a honra do conhecimento: a impersonalidade e a universalidade... Kant , como todos os filósofos, em vez de estudar o problema estético baseando-se na experiência do artista, não meditou acerca da arte e da beleza sendo como "espectador" e insensivelmente introduziu o elemento "espectador" no conceito da arte e da "beleza". Se ao menos fossem bons espectadores estes filósofos!... Haveria então neles um fato pessoal, uma experiência, um conjunto de emoções, de desejos, de surpresas e de êxstases! Mas parece que foi exatamente o contrário. De modo que nos dão umas definições secas, que falta por completo a experiência pessoal mais sutil na forma de grande ver com erro fundamental. 


(Friedrich Nietzsche, in Genealogia da Moral)

sexta-feira, 4 de março de 2011

Desapego

Monet
Sempre é preciso saber quando uma etapa chega ao final. Se insistirmos em permanecer nela mais do que o tempo necessário, perdemos a alegria e o sentido das outras etapas que precisamos viver. Encerrando ciclos, fechando portas, terminando capítulos. Não importa o nome que damos, o que importa é deixar no passado os momentos que já se acabaram. As coisas passam, e o melhor que fazemos é deixar que elas possam ir embora.Deixar ir embora. Soltar. Desprender-se. Ninguém está jogando nesta vida com cartas marcadas, portanto às vezes ganhamos, e às vezes perdemos. Antes de começar um capítulo novo, é preciso terminar o antigo: diga a si mesmo que o que passou, jamais voltará. Lembre-se de que houve uma época em que podia viver sem aquilo - nada é insubstituível, um hábito não é uma necessidade. Encerrando ciclos. Não por causa do orgulho, por incapacidade, ou por soberba, mas porque simplesmente aquilo já não se encaixa mais na sua vida. Feche a porta, mude o disco, limpe a casa, sacuda a poeira.

(Fernando Pessoa)
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