"A literatura tem essa magia de nos tornar contemporâneos de quem quisermos." (Inês Pedrosa)

sexta-feira, 29 de junho de 2012

O TEATRO DAS IDEIAS

Já podemos, assim que tivermos força de espírito para tanto, livrar-nos do absurdo do nirvana, do pessimismo, do racionalismo, da teologia e de todos os outros subterfúgios aos quais nos agarramos por medo de olhar a vida de frente e nela ver não a realização de uma lei moral ou das deduções da razão, mas a satisfação de uma paixão que vem de dentro de nós e da qual não podemos nunca prestar contas. É natural que o homem se encolha diante da terrível responsabilidade que esse fato inexorável atira sobre ele. Todas as desculpas de seu acervo dissolvem-se diante de tal fato – “A mulher me tentou”; “A serpente me tentou”; “Não estava em mim naquela hora”; “Não queria fazer mal”; “Minha paixão falou mais alto que a razão”; “Era meu dever fazê-lo”; “A Bíblia diz que devemos fazê-lo”; “Todo mundo faz”; e coisas assim. Nada resta senão a confissão franca: “Fiz porque sou assim”. Todos detestam dizer isso. Querem acreditar que seus atos generosos são sua característica verdadeira e que suas maldades são aberrações ou produtos da força das circunstâncias.

- Bernard Shaw

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Um homem inteiramente inútil

Ótimo é aquele que de si mesmo conhece todas as coisas;
Bom, o que escuta os conselhos dos homens judiciosos.
Mas o que por si não pensa, nem acolhe a sabedoria alheia,
Esse é, em verdade, um homem inteiramente inútil.

- Hesíodo,
Os Trabalhos e os Dias,

apud


Aristóteles,
Ética a Nicômaco

domingo, 24 de junho de 2012

Mochila Vazia


Quanto pesam as suas vidas? Imaginem que estão carregando uma mochila nas costas. Quero que sintam as alças nos ombros. Estão sentindo? Eu quero que a encham com tudo o que tem em suas vidas. Comecem com as coisas pequenas das prateleiras e gavetas, bugingangas e coleções. Sintam o peso aumentar. Agora acrescentem coisas maiores. Roupas, louças, abajures, roupa de cama, sua tv. Esta ficando pesado. Há coisas maiores ainda. Seu sofá, sua cama, sua mesa de cozinha. Coloquem tudo aí dentro. Seu carro, coloquem também. Sua casa, seja uma quitinete ou uma casa de dois quartos. Quero que coloquem tudo dentro dessa mochila. Agora tentem andar. É meio difícil não? É isso que fazemos diariamente. Nós carregams tanto peso que não podemos nos mover e não se enganem: mover-se é viver. Agora vou jogar a mochila no fogo. O que voces tirariam delas? Fotos? Fotos são para pessoas que não conseguem lembrar. Eu quero que deixem tudo queimar e se imaginem acordando amanhã sem nada. É bem estimulante não?

(Filme "Up in the air")

sábado, 23 de junho de 2012

A Irmandade Secreta

Edward Hopper
E mais uma coisa: havia um livro aberto sobre a mesa. Naquele café, ninguém jamais abrira um livro a mesa. Para Tereza, o livro era sinal de reconhecimento de uma irmandade secreta. De fato, contra o mundo de grosseria que a cercava, tinha uma só arma: os livros que tomava emprestados na biblioteca municipal; sobretudo os romances: lia-os em quantidade, de Fielding a Thomas Mann. Eles lhe ofereciam uma chance de evasão imaginária, arrancando-a de uma vida que não lhe trazia nenhum satisfação, mas tinham também para ela um sentido como objetos: gostava de passear na rua com livros debaixo do braço. Eram para ela o que a elegante bengala era para um dândi do século passado. Eles a distinguiam das outras.

- Milan Kundera,
A insustentável leveza do ser

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Há pessoas demais no mundo

Raul Alexandre

Há pessoas demais no mundo para que se encontre algo especial na humanidade
Pessoas demais neste país
Pessoas demais nesta cidade
Pessoas demais nas ruas
Pessoas demais nos supermercados,
nos bares,
nas estações de metrô
ou sentando seus traseiros iguais
nas cadeiras dos cinemas com seus filmes iguais
nos estofados de seus carros demais
nos seus rabos cheios de culpa

Há pessoas demais nesta casa
E há pessoas demais na minha vida para que eu consiga gostar de todas elas

Pessoas demais e sempre mais pessoas
Como se uma máquina obscena vivessse a cuspir humanos como manequins numerados
Ou uma imensa vagina insana sempre fértil a vomitar seus regaços sem trégua
Centenas de milhares de um lote
Outras centenas de milhares de outro
Milhões, bilhões e a multiplicação nunca cessa
Todas iguais, todas demais
Cada vez menos humanas
Cada vez mais animais
Canibais num banquete de reis
Pessoas demais no mundo e cada uma delas acreditando-se única
e perfeita
e especial
Todas na infindável busca por ser diferente
Atrás do seu pequeno e sonhado momento efêmero de fama
Com suas modas, filosofias, melancias, tinturas de cabelo, pseudopolícas e rasos intelectos

: nunca satisfeitas

Pessoas mais que formigas
Não mais interessantes que formigas
Nascendo e morrendo todos os dias sem nunca se cansar
Empilhando-se em edifícios, beliches, favelas
Sugando a alma umas das outras
Sugando o tempo e o espaço umas das outras
Implorando por um minuto de atenção umas das outras
Pessoas devorando pessoas
Embriagadas de sangue e suor e sexo
Pessoas fazendo pessoas para chamar de suas
Ludibriando a si mesmas acreditando-se amadas e queridas e insubstituíveis
Quando todas elas demais
Odeiam demais a si mesmas
E vendem barato seus corpos banais por um amor que desconhecem

Pessoas culpando Deus pelos seus fracassos de liquidação
Pessoas culpadas demais pelos seus enganos coletivos
Enlouquecendo e fazendo das suas próprias loucuras as novas leis
Trancafiando umas as outras em suas penitenciárias sociais
Propagando fome,
miséria,
guerras,
música ruim,
falsas religiões
e lixo e doenças e toda a merda que puder sair de seus cus voltados para o sol
Tudo pelo dinheiro
Tudo pelo agora
Tudo pelo que puder ser exclusivo para realizar seus sonhos de se tornarem deuses
grandes o suficiente para poder esmagar todas as outras com um tapa
E enfim poder tornar ao estado natural
Nuas
No silêncio perfeito da ausência dos outros
Um sibilar melodioso do chocálho de uma cascável
e o fruto proibido.

- Charles Bukowiski,
O Amor é um Cão dos Diabos

quarta-feira, 20 de junho de 2012

A Morte da Política

É um costume moderno este de entregar ao estado o dever de todas as coisas: educação, segurança, saúde, lazer como um mecanismo autônomo. Houve um tempo em que isso era dever dos próprios cidadãos. Mas há quem suspeite de não haja mais cidadãos. Não é de  se assustar que a literatura ou o cinema, como a voz de profetas, aponte para a morte da política tão bem representada pela nossa submissão diante do estado e das tecnologias. 

- Alan Teixeira

terça-feira, 19 de junho de 2012

Toda a aproximação é um conflito


Que somos todos diferentes, é um axioma da nossa naturalidade. Só nos parecemos de longe, na proporção, portanto, em que não somos nós. A vida é, por isso, para os indefinidos; só podem conviver os que que nunca se definem, e são, um e outro, ninguéns.

Cada um de nós é dois, e quando duas pessoas se encontram, se aproximam, se ligam, é raro que as quatro possam estar de acordo. O homem que sonha em cada homem que age, se tantas vezes se malquista com o homem que age, como não se malquistará com o homem que age e o homem que sonha no Outro?

Somos forças porque somos vidas. Cada um de nós tende para si próprio com escala pelos outros. Se temos por nós mesmos o respeito de nos acharmos interessantes (...) Toda a aproximação é um conflito. O outro é sempre o obstáculo para quem procura. Só quem não procura é feliz; porque só quem não busca, encontra, visto que quem não procura já tem, e já ter, seja o que for, é ser feliz, como não pensar é a parte melhor de ser rico.

Olho para ti, dentro de mim, noiva suposta, e já nos desavimos antes de existires. O meu hábito de sonhar claro dá-me uma noção justa da realidade. Quem sonha de mais precisa de dar realidade ao sonho. Quem dá realidade ao sonho tem que dar ao sonho o equilíbrio da realidade. Quem dá ao sonho o equilíbrio da realidade, sofre da realidade de sonhar tanto como da realidade da vida e do irreal do sonho como do sentir a vida irreal.

Estou-te esperando, em devaneio, no nosso quarto com duas portas, e sonho-te vindo e no meu sonho entras até mim pela porta da direita; se, quando entras, entras pela porta da esquerda, há já uma diferença entre ti e o meu sonho. Toda a tragédia humana está neste pequeno exemplo de como aqueles com quem pensamos nunca são aqueles em quem pensamos.


Fernando Pessoa,
'O Rio da Posse'

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Impossível estarmos juntos


Edvard Munch, Cat
É impossível no mundo
estarmos juntos
ainda que do meu lado adormecesses.
O véu que protege a vida
nos separa.
O véu que protege a vida
nos protege.
Aproveita, pois,
que é tudo branco agora,
à boca do precipício,
neste vórtice
e fala
nesta clareira aberta pela insônia
quero ouvir tua alma
a que mora na garganta
como em túmulos
esperando a hora da ressurreição,
fala meu nome
antes que eu retorne
ao dia pleno,
à semi-escuridão.

.
- Adélia Prado

sexta-feira, 15 de junho de 2012

O Mundo Sem Mim


Outro dia, fiquei pensando no mundo sem mim. Há o mundo continuando a fazer o que faz. E eu não estou lá. Muito estranho. Penso no caminhão do lixo passando e levando o lixo e eu não estou lá. Ou o jornal jogado no jardim e eu não estou lá para pegá-lo. Impossível. E pior, algum tempo depois de estar morto, vou ser verdadeiramente descoberto. E todos aqueles que tinham medo de mim ou me odiavam vão subitamente me aceitar. Minhas palavras vão estar em todos os lugares. Vão se formar clubes e sociedades. Será nojento. Será feito um filme sobre a minha vida. Me farão muito mais corajoso e talentoso do que sou. Muito mais. Será suficiente para fazer os deuses vomitarem. A raça humana exagera em tudo: seus heróis, seus inimigos, sua importância.

Charles Bukowski

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Equações

‎- Você e eu talvez não possamos ver além de nossas escolhas, mas aquele homem não consegue ver além de escolha nenhuma.

- Por que não?

- Ele não as entende. Não tem como. Para ele escolhas são variáveis de uma equação. Uma por vez, cada variável precisa ser resolvida e provada. Essa é a função dele: equilibrar a equação.

- E qual o seu propósito?

- Desequilibrá-la.

(Matrix Revolutions)

domingo, 10 de junho de 2012

Para Quem a Verdade?

Até o presente, os erros foram as forças mais ricas em consolação: agora se espera os mesmos serviços das verdades reconhecidas, mas elas se fazem esperar um pouco demais. 

Como, as verdades não seriam talvez mais apropriadas para consolar? - Esse seria, pois, um argumento contra as verdades? Que têm elas de comum com o estado doentio dos homens sofredores e degenerados, para que se possa exigir delas que lhes sejam úteis? 

Não se prova nada contra a verdade de uma planta ao constatar que ela não contribui de alguma maneira para a cura dos homens doentes. Mas outrora havia a convicção de que o homem era o objetivo da natureza, a poto de admitir sem cerimônia que o conhecimento não podia revelar nada que não fosse salutar e útil ao homem e, mais ainda, que não poderia a nenhum preço haver outra coisa no mundo. 

- Talvez de tudo isso se poderia concluir que a verdade, como entidade e conjunto, só existe para as almas contemporaneamente poderosas e desinteressadas, alegres e pacíficas (como era a de Aristóteles), e que essas almas seriam as únicas a procurá-la realmente: pois os outros procuram remédios para seu uso, qualquer seja, aliás, o orgulho que tem para vangloriar-se  de seu intelecto e da liberdade desse intelecto - eles não procuram a verdade. Aí está porque a ciência proporciona tão pouca alegria verdadeira a esses homens que a recriminam por sua frieza, por sua aridez e por sua desumanidade: esse é o juízo dos doentes sobre a disposição daqueles que são saudáveis. 

- Os deuses da Grécia também não tinham grande tino para consolar; quando o povo grego acabou por cair doente, ele também foi uma das razões por que semelhantes deuses pereceram.

Friedrich Nietzsche,
Aurora

sábado, 9 de junho de 2012

Um Bom Livro

Quantos homens marcaram a data de uma nova época de suas vidas com a leitura de um livro! Talvez exista o livro que nos explique nossos milagres e nos revele outros. As coisas atualmente inexpressáveis, talvez as encontremos expressas em algum lugar.

- Henry David Thoreau, 
Walden

domingo, 3 de junho de 2012

Minha Tragédia

A minha vida, tragédia caída sob a pateada dos anjos e que só o primeiro acto se representou. 

Amigos, nenhum. Só uns conhecidos que julgam que simpatizam comigo e teriam talvez pena se um comboio me passasse por cima e o enterro fosse em um dia de chuva. 


O prémio natural do meu afastamento da vida foi a incapacidade, que cirie nos outros, de sentirem comigo. Em torno a mim há uma auréola de frieza, uma halo de gelo que repele os outros. Ainda não consegui não sofrer com minha solidão. Tão difícil é obter aquela distinção de espírito que permeia ao isolamento ser um repouso sem angústia.

Nunca dei crédito à amizade que me mostraram, como não teria dado ao amor, se mo houvessem mostrado, o que aliás, seria impossível. Embora nunca tivesse ilusões a respeito daqueles que se diziam meus amigos, consegui sempre sofrer desilusões com eles – tão complexo e sutil é o meu destino de sofrer.

Nunca duvidei que todos me traíssem; e pasmei sempre quando me traíram. Quando chegava o que eu esperava, era sempre inesperado para mim. Compreendi que era impossível a alguém amar-me, a não ser que lhe faltasse de todo o senso estético – e então eu o desprezaria por isso; e que mesmo simpatizar como não podia passar de um capricho da indiferença alheia.


Ver claro em nós e em como os outros nos vêem! Ver esta verdade frente a frente! E no fim o grito de Cristo no Calvário, quando viu, frente a frente, a sua verdade; Senhor, senhor, por que me abandonaste?



- Fernando Pessoa,

Livro do Desassossego
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