"A literatura tem essa magia de nos tornar contemporâneos de quem quisermos." (Inês Pedrosa)

quarta-feira, 30 de maio de 2012

A Revolução da Bondade


Vladimir Kush

Acho que a grande revolução, e o livro «Ensaio sobre a Cegueira» fala disso, seria a revolução da bondade. Se nós, de um dia para o outro, nos descobríssemos bons, os problemas do mundo estariam resolvidos. Claro que isso nem é uma utopia, é um disparate. Mas a consciência de que isso não acontecerá, não nos deve impedir, cada um consigo mesmo, de fazer tudo o que pode para reger-se por princípios éticos. Pelo menos a sua passagem pelo este mundo não terá sido inútil e, mesmo que não seja extremamente útil, não terá sido perniciosa. Quando nós olhamos para o estado em que o mundo se encontra, damo-nos conta de que há milhares e milhares de seres humanos que fizeram da sua vida uma sistemática acção perniciosa contra o resto da humanidade. Nem é preciso dar-lhes nomes.

José Saramago, 
" Folha de S. Paulo, Outubro 1995"

terça-feira, 29 de maio de 2012

Flor do Mal



Gostavas de tragar o universo inteiro,
Mulher impura e cruel! Teu peito carniceiro,
Para se exercitar no jogo singular,
Por dia um coração precisa devorar.
Os teus olhos, a arder, lembram as gambiarras
Das barracas de feira, e prendem como garras;
Usam com insolência os filtros infernais,
Levando a perdição às almas dos mortais.

Ó monstro surdo e cego, em maldades fecundo!
Engenho salutar, que exaure o sangue do mundo
Tu não sentes pudor? o pejo não te invade?
Nenhum espelho há que te mostre a verdade?
A grandeza do mal, com que tu folgas tanto.
Nunca, jamais, te fez recuar com espanto
Quando a Natura-mãe, com um fim ignorado,
— Ó mulher infernal, rainha do Pecado! —
Vai recorrer a ti para um génio formar?

Ó grandeza de lama! ó ignomínia sem par.

- Charles Baudelaire, in "As Flores do Mal" -

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Mil Vidas a Viver

Deixei a mata por uma razão tão boa quanto a que me levou para lá. Talvez me parecesse que eu tinha várias outras vidas a viver, e não podia dedicar mais tempo a àquela. É notável a facilidade e a insensibilidade com que caímos numa determinada rotina, e construímos uma trilha batida para nós mesmos. (...) Como, então, devem ser gastas e empoeiradas as estradas do mundo, como são fundos os sulcos da tradição e da conformidade! Eu não quis pegar uma cabine de primeira classe sob o tombadilho, mas viajar de segunda, na frente do mastro e no convés do mundo, pois ali podia enxergar melhor o luar entre as montanhas.

Henry David Thoreau,
Walden

domingo, 27 de maio de 2012

A Arte Enquanto Criação

Jan Vermeer
A ruína da influência aristocrática criou uma atmosfera de brutalidade e de indiferença pelas artes, onde uma sensibilidade fina não tem refúgio. Dói mais, cada vez mais, o contato da alma com a vida. O esforço é cada vez mais doloroso, porque são cada vez mais odiosas as condições exteriores do esforço. A ruína dos ideais clássicos fez de todos artistas possíveis, e portanto maus artistas. Quando o critério da arte era a construção sólida; a observância cuidadosa das regras - poucos podiam tentar ser artistas, e grande parte desses são muito bons. Mas quando a arte passou de ser tida como criação, para passar a ser tida como expressão de sentimentos, cada qual podia ser artista, porque todos têm sentimentos.
- Fernando Pessoa

sábado, 26 de maio de 2012

O Abutre


Era um abutre que me dava grandes bicadas nos pés. Tinha já dilacerado sapatos e meias e penetrava-me a carne. De vez em quando, inquieto, esvoaçava à minha volta e depois regressava à faina. Passava por ali um senhor que observou a cena por momentos e me perguntou depois como eu podia suportar o abutre.

- É que estou sem defesa - respondi - Ele veio e atacou-me. Claro que tentei lutar, estrangulá-lo mesmo, mas é muito forte, um bicho destes! Ia até saltar-me à cara, por isso preferi sacrificar os pés. Como vê, estão quase despedaçados.

- Mas deixar-se torturar dessa maneira! - disse o senhor - Basta um tiro e pronto!
- Acha que sim? - disse eu - Quer o senhor disparar o tiro?
- Certamente - disse o senhor - É só ir a casa buscar a espingarda. Consegue aguentar meia hora?
- Não sei lhe dizer. - respondi.
Mas sentindo uma dor pavorosa, acrescentei:
- De qualquer modo, vá, peço-lhe.
- Bem - disse o senhor - Vou o mais depressa possível.

O abutre escutara tranquilamente a conversa, fitando-nos alternadamente. Vi então que ele percebera tudo. Elevou-se com um bater de asas e depois, empinando-se para tomar impulso, como um lançador de dardo, enfiou-me o bico pela boca até ao mais profundo do meu ser. Ao cair senti, com que alívio, que o abutre se engolfava impiedosamente nos abismos infinitos do meu sangue.

- Franz Kafka,
O Abutre

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Amor e Morte

Edvard Munch, Cat
Nem no amor nem na morte pode-se penetrar duas vezes - menos ainda que no rio de Heráclito. Eles são, na verdade, suas próprias cabeças e seus próprios rabos, dispensando e descartando todos os outros. (...) Assim, não se pode aprender a amar, tal como não se pode aprender a morrer. E não se pode aprender a arte ilusória - inexistente, embora ardentemente desejada - de evitar suas garras e ficar fora de seu caminho. Chegando o momento, o amor e a morte atacarão - mas não se tem a mínima ideia de quando isso acontecerá.  Quando acontecer, vai pegar você desprevenido. 

Zygmunt Bauman,
Amor Líquido


domingo, 20 de maio de 2012

Somos o Tempo

Somos o tempo. Somos a famosa parábola de Heráclito o Obscuro. Somos a água, não o diamante duro, a que se perde, não a que repousa. Somos o rio e somos aquele grego que se olha no rio. Seu semblante muda na água do espelho mutante, no cristal que muda como o fogo. Somos o vão rio prefixado, rumo a seu mar. Pela sombra cercado. Tudo nos disse adeus, tudo nos deixa. A memória não cunha sua moeda. E no entanto há algo que se queda e no entanto há algo que se queixa.

- Jorge Luis Borges

sábado, 19 de maio de 2012

Construir sentidos

A gente tem que se enganar para sobreviver; tem que fingir que as coisas têm sentido; tem que levar as pessoas a acreditarem que sabemos o que estamos fazendo. Apenas jogamos o jogo, não temos escolha. Nascemos num determinado meio, estamos condicionados a ele. Podemos escapar um pouco aqui e ali, como faríamos numa canoa furada, mas não há saída completa, não há tempo para ela, a gente precisa alcançar o porto, ou imagina que precisa. Nunca o alcançaremos, é claro... A canoa afundará antes disso.

- Henry Miller


quinta-feira, 17 de maio de 2012

Por que é bela arte?


Por que é bela a arte? Porque é inútil. Por que é feia a vida? Porque é toda fins e propósitos e intenções. Todos os seus caminhos são para ir de um ponto para outro. Quem nos dera o caminho feito de um lugar donde ninguém parte para um lugar onde ninguém vai.

- Fernando Pessoa, 
Livro do Desassossego


quarta-feira, 16 de maio de 2012

Estranho

Há vários dias que passo diante da minha estante de livros e um título que há algum tempo já li me atrai. O livro possui uma capa verde com uma faixa preta, um desenho dos ombros de um homem de terno e gravata, e uma luz amarela desbotada no lugar do rosto. Nada de extraordinário. Paro diante dele, olho, penso na última leitura, mas antes de o retirar do seu confortável lugar, me afasto e volto aos meus afazeres. Da última vez, porém, não pude resistir. Retirei o livro, folheei algumas páginas, li alguns trechos aleatórios e o coloquei no lugar novamente, de certa forma aliviado. Mais um dia se passou, tive a breve impressão de o ouvir me chamar, como se tivesse algo importante a me contar, me contive por um instante, a situação já estava fugindo controle, mas não pude resistir e obrigado por uma força estranha peguei o livro. Mas por que este livro entre centenas de outros? Resolvi então o reler com a missão de resolver o mistério. É um diário datado de 1932. A leitura é agradável. Não consigo parar de ler. Dois trechos me chamam a atenção "Tínhamos um medo horrível dele, porque sentíamos que era um homem sozinho. (...) É isso então que me espera? Pela primeira vez me incomoda estar só. Gostaria de falar com alguém sobre o que está me acontecendo, antes que seja tarde demais, antes que eu comece a assustar garotinhos."* Após esta frase parei de ler e fiquei pensando, afinal não me lembro de ter lido este trecho na primeira vez que o li. Será que é o mesmo livro? Talvez não possamos ler o mesmo livro duas vezes. Antes olhava para minha estante e me orgulhava de todos os livros que havia lido, mas agora olho e vejo um monte de livros estranhos. De súbito tudo começa a se metamorfosear. Já não reconheço nada, tudo é estranho.  

- Alan Teixeira




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* A Náusea, J. P. Sartre

terça-feira, 15 de maio de 2012

O Nada

Edward Hopper, Nighthawks, 1942
Lancei um olhar ansioso ao meu redor: só o presente, nada além do presente. Móveis leves e sólidos, incrustados em seu presente, uma mesa, uma cama, um armário de espelho - e eu próprio. Revelava-se a verdadeira natureza do presente: era o que existe e tudo o que não era presente não existia. O passado não existia. De modo algum. Nem nas coisas, nem mesmo em meu pensamento. Por certo fazia muito tempo que eu compreendera que o meu me escapara. Mas até então pensava que simplesmente se retirara do meu alcance. Para mim o passado era apenas uma aposentadoria: era uma outra maneira de existir, um estado de férias e de inação; cada acontecimento, quando seu papel findava, se arrumava sensatamente, por si próprio, numa caixa e se tornava acontecimento honorário: é tão difícil imaginar o nada! Agora eu sabia: as coisas são inteiramente o que parecem - e por trás delas... não existe nada. 

- Jean Paul Sartre,
A Náusea

domingo, 13 de maio de 2012

Viver, Deliberadamente Viver

Fui para a mata porque queria viver deliberadamente, enfrentar apenas os fatos essenciais da vida e ver se não poderia aprender o que ela tinha a ensinar, em vez de, vindo a morrer, descobrir que não tinha vivido. Não queria viver o que não era vida, tão caro é viver; e tampouco queria praticar a resignação, a menos que fosse absolutamente necessário. Queria viver profundamente e sugar a vida até a medula, viver com tanto vigor e de forma tão espartana que eliminasse tudo aquilo que não fosse vida, recorta-lhe um largo talho e passar-lhe rente um alfanje, acuá-la num canto e reduzi-la a seus termos mais simples e, se ela se revelasse mesquinha, ora, aí então eu pegaria sua total e genuína mesquinharia e divulgaria ao mundo essa mesquinharia; ou, se fosse sublime, iria saber por experiência própria, e poderia apresentar um relato fiel...

- Henry David Thoreau
Walden

sábado, 12 de maio de 2012

A propriedade pode se conciliar com a justiça?

Mark Chagal
O refrão básico da utopia de Platão, que ainda hoje continua a ser cantado pelos socialistas, repousa num conhecimento falho do ser humano: nele falta o exame histórico dos sentimentos morais, a penetração na origem dos atributos bons e úteis da alma humana. Como toda antiguidade, ele acreditava no bem e no mal como no preto e no branco: ou seja, numa radical diferença entre homens bons e maus, atributos bons e ruins. - Para que, de ora em diante, a propriedade inspire mais confiança e se torne mais moral, mantenham-se abertas as vias que, pelo trabalho, levam à pequena fortuna, mas impeça-se o enriquecimento repentino e sem esforço; sejam tirados das mãos de particulares e sociedades privadas todos os ramos do transporte e do comércio que favorecem o acúmulo de grandes fortunas, sobretudo o comércio de dinheiro - e sejam vistos como seres perigosos para a comunidade tanto aquele que possui demais como aquele que nada possui.

- Friedrich Nietzsche
O Andarilho e Sua Sombra, 1879

sexta-feira, 11 de maio de 2012

A Alegria de Sísifo

Gustave Dore
Mas só há um mundo. A felicidade e o absurdo são dois filhos a mesma terra. São inseparáveis. O erro seria dizer que a felicidade nasce forçosamente da descoberta absurda. Acontece também que o sentimento do absurdo nasça da felicidade. “Acho que tudo está bem”, diz Édipo e essa frase é sagrada. Ressoa no universo altivo e limitado do homem. Ensina que nem tudo está perdido, que nem tudo foi esgotado. Expulsa deste mundo um deus que nele entrara com a insatisfação e o gosto das dores Inúteis. Faz do destino uma questão do homem, que deve ser tratado entre homens. Toda a alegria silenciosa de Sísifo aqui reside. O seu destino pertence-lhe.

- Albert Camus
O Mito de Sísifo

terça-feira, 8 de maio de 2012

O Peso de Viver

Uns olham, contemplam, veem; outros acariciam o mundo ou se deixam acariciar por ele, atiram-se, enrolam-se, banham-se, mergulham nele e, às vezes, se esfolam. Os primeiros não sabem o peso das coisas; os segundos se abandonam ao peso das coisas, a epiderme recebendo a pressão delas. A pele deles vê, como uma calda de pavão.

- Michel Serres

domingo, 6 de maio de 2012

Nós, que não cremos

Para nós, que não cremos, é muito fácil explicar em que cremos. O que me parece misterioso é saber em que creem os que creem e, sinceramente, por mais que os tenha escutado, eu nunca entendi a que eles se referem. Nós, porém, os não crentes, acreditamos em algo: no valor da vida, da liberdade e da dignidade, e em que o gozo dos homens está em suas próprias mãos e de ninguém mais. São os que devem enfrentar com lucidez e determinação sua condição de solidão trágica, pois é essa instabilidade que dá acesso à criação e à liberdade.

- Fernando Savater

sábado, 5 de maio de 2012

O Silêncio das Massas


Nessa prisão ao ar livre em que o mundo está se transformando, já nem importa mais o que depende do que, pois tudo se tornou uno. Todos os fenômenos enrijecem-se em insígnias da dominação absoluta do que existe. Não há mais ideologia no sentido próprio de falsa consciência, mas somente propaganda a favor do mundo, mediante a sua duplicação e a mentira provocadora, que não pretende ser acreditada, mas que pede silêncio. 

Theodor Adorno
Prismas - Crítica Cultural e Sociedade

terça-feira, 1 de maio de 2012

Frenesi

No confinamento do lar o tempo parecer decorrer calmamente, tornando possível ter uma percepção mais aguçada dos acontecimentos e dos seus sutis detalhes, uma visão mais abrangente da própria existência. No mundo externo ao lar, nas grandes cidades, todo acontecimento é marcado por uma percepção grosseira, num rápido passar do tempo, pressa e frenesi constante, como se o mundo além daquelas quatro paredes fosse um gigantesco acelerador de partículas e a vida apenas uma fagulha.

(Alan Teixeira)
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