"A literatura tem essa magia de nos tornar contemporâneos de quem quisermos." (Inês Pedrosa)

terça-feira, 21 de outubro de 2014

O Sonho Pela Humanização

O sonho pela humanização, cuja concretização é sempre processo, e sempre devir, passa pela ruptura das amarras reais, concretas, de ordem econômica, política, social, ideológica, etc., que nos estão condenando a desumanização. O sonho é assim uma exigência ou uma condição que se vem fazendo permanente na história que fazemos e que nos faz e re-faz 

Paulo Freire, 
Pedagogia da Esperança

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

No caminho, com Maiakovski



















"Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakóvski.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.

Tu sabes, conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite, eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já são se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz;
e nós, qu enão temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio de meu quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas amanhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.

Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarda
até que a Democracia
se digne aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.

Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,
no plantio.
Mas ao tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares,
mas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.

E por temor eu me calo,
por termo aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita - MENTIRA!

Eduardo Alves da Costa

domingo, 5 de outubro de 2014

Dialética do Esclarecimento

A aporia com que defrontamos em nosso trabalho revela-se assim como o primeiro objeto a investigar: a autodestruição do esclarecimento. Não alimentamos dúvida nenhuma - e nisso reside nossa petitio principii - de que a liberdade na sociedade é inseparável do pensamento esclarecedor. Contudo, acreditamos ter reconhecido com a mesma clareza que o próprio conceito desse pensamento, tanto quanto as formas históricas concretas, a instituições da sociedade com as quais está entrelaçado, contém o germe para a regressão que hoje tem lugar por toda parte. Se o esclarecimento não acolhe dentro de si a reflexão sobre esse elemento regressivo, ele está selando seu próprio destino. Abandonando a seus inimigos a reflexão sobre o elemento destrutivo do progresso, o pensamento cegamente pragmatizado perde seu caráter superador e, por isso, também sua relação com a verdade. A disposição enigmática das massas educadas tecnologicamente a deixar dominar-se pelo fascínio de um despotismo qualquer, sua afinidade autodestrutiva com a paranóia racista, todo esse absurdo incompreendido manifesta a fraqueza do poder de compreensão do pensamento teórico atual.

Dialética do Esclarecimento,
Theodor Adorno & Max Horkheimer

domingo, 14 de setembro de 2014

Desperto na Encruzilhada

"Encontrei-me neste mundo certo dia, que não sei qual foi, e até ali, desde que evidentemente nascera, tinha vivido sem sentir. Se perguntei onde estava, todos me enganaram, e todos se contradiziam. Se pedi que me dissessem o que faria, todos me falaram falso, e cada um me disse uma coisa sua. Se, de não saber, parei no caminho, todos pasmaram que eu não seguisse para onde ninguém sabia o que estava, ou não voltasse para trás - eu que, desperto na encruzilhada, não sabia de onde viera. Vi que estava vestido de pajem, e não me deram a rainha, culpando-me de não a ter. Vi que tinha nas mãos a mensagem que entregar, e quando lhes disse que o papel estava em branco, riram- se de mim. E ainda não sei se riram porque todos os papeis estão brancos, ou porque todas as mensagens se advinham. 

Por fim sentei-me na pedra da encruzilhada como à lareira que me faltou. E comecei, a sós comigo, a fazer barcos de papel com a mentira que me haviam dado. Ninguém me quis acreditar, nem por mentiroso, e não tinha lago com que provasse a minha verdade."

Fernando Pessoa, 
Livro do Desassossego

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Adversidade

Examinai a vida dos homens e dos povos melhores e mais fecundos, e perguntai se uma árvore que deve elevar-se altivamente nos ares pode dispensar o mau tempo e as tempestades; se a hostilidade do exterior, as resistências exteriores, todas as espécies de ódio de inveja, de teimosia, de desconfiança, de dureza, de avidez e de violência não fazem parte das circunstâncias favoráveis sem as quais nada, nem sequer a virtude, poderia crescer grandemente? O veneno que mata as naturezas fracas é um fortificante para as fortes; ... e por isso não lhe chamam veneno. 

Friedrich Nietzsche, 
in 'A Gaia Ciência'

segunda-feira, 9 de junho de 2014

A Tempestade

A Tempestade - Thomas Chambers
O sofrimento não tem menos sabedoria do que o prazer: tal como este, faz parte em elevado grau das forças que conservam a espécie. Porque se fosse de outra maneira há muito que esta teria desaparecido; o facto de ela fazer mal não é um argumento contra ela, é muito simplesmente a sua essência. Ouço nela a ordem do capitão: «Amainem as velas». O intrépido navegador homem deve treinar-se a dispor as suas de mil maneiras; de outro modo, não tardaria a desaparecer, o oceano havia de o engolir depressa. É preciso que saibamos viver também reduzindo a nossa energia; logo que o sofrimento dá o seu sinal, é chegado o momento; prepara-se um grande perigo, uma tempestade, e faremos bem em oferecer a menor «superfície» possível. 

Há homens, contudo, que, quando se aproxima o grande sofrimento, ouvem a ordem contrária e nunca têm ar mais altivo, mais belicoso, mais feliz do que quando a borrasca chega, que digo eu! E a própria tempestade que lhes dá os seus mais altos momentos! São os homens heróicos, os grandes «pescadores da dor», esses raros, esses excepcionais de que é necessário fazer a mesma apologia que se faz para a própria dor! Não lha podemos recusar! São conservadores da espécie, estimulantes de primeira qualidade, quando mais não seja porque resistem ao bem-estar e não escondem o seu desprezo por essa espécie de felicidade. 

Friedrich Nietzsche,
 in "A Gaia Ciência"

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Dialética



É claro que a vida é boa
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz
Mas acontece que eu sou triste...

Vinícius de Moraes

domingo, 4 de maio de 2014

Não se separar do mundo

Não se separar do mundo. Não se desperdiça a vida quando ela é conduzida sob a luz. Todo o meu esforço em todas as posições, as desgraças, as desilusões, é encontrar os contatos. E, mesmo em meio a essa tristeza em mim, que desejo de amar e que êxtase ante a simples vista de uma colina no ar da noite.

Albert Camus,
A Esperança do Mundo

sábado, 3 de maio de 2014

A Ética do segundo nascimento do homem

A ética diz respeito, como dissemos, ao segundo nascimento do homem, do homem livre. Pois todos nascemos homens, mas nos tornamos humanos. A condição humana não é uma propriedade, não é uma qualidade. É uma obra permanentemente criada, sustentada e produzida. É uma história feita pela apropriação dos acontecimentos da vida de cada um. Ser humano não é uma condição dada e pronta. Nascemos homens e cotidianamente nos fazemos humanos, ou não. E porque é assim, os homens pode se tornar desumanos.

- Sapienza & Pompeia
Os Dois Nascimentos do Homem

domingo, 27 de abril de 2014

Invadidos por nós mesmos

"Pode ser que nós, ocidentais de classe média (...), passemos pela mesma coisa por que passaram os índios em 1500. Eles continuam aí, mas o mundo deles acabou em 1500. Se formos falar do fim do mundo, pergunte aos índios como é, porque eles sabem. Eles viveram isso. A América acabou. Pode ser que venhamos todos a ser índios, nesse sentido. Todos venhamos a passar por essa experiência de ter um mundo desabando. No caso deles, eles foram invadidos por nós. Nós também vamos ser invadidos por nós. Já estamos sendo invadidos por nós mesmos. Vamos acabar com nós mesmos da mesma maneira como acabamos com os índios: com essa concepção de que é preciso crescer mais, produzir mais."

Eduardo Viveiros de Castro
Revista Piauí 88, janeiro de 2014, pág. 23

sábado, 26 de abril de 2014

Inumanidade

"A nossa escolha não tem por que ser feita entre socialismos que foram pervertidos e capitalismos perversos de origem, mas entre a humanidade que o socialismo pode ser e a inumanidade que o capitalismo sempre foi."
- José Saramago

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Retrato de um Cadáver

A estratificação social separa e opõe, assim, os brasileiros ricos e remediados dos pobres, e todos eles dos miseráveis, mais do que corresponde habitualmente a esses antagonismos. Nesse plano, as relações de classes chegam a ser tão infranqueáveis que obliteram toda comunicação propriamente humana entre a massa do povo e a minoria privilegiada, que a vê e ignora, a trata e maltrata, a explora e a deplora, como se essa fosse uma conduta natural. A façanha que representou o processo de fusão racial e cultural é negada, desse modo, no nível aparentemente mais fluído das relações sociais, opondo à unidade de um denominador cultural comum, com que se identifica um povo de 160 milhões de habitantes, a dilaceração desse mesmo povo por uma estratificação classista de nítido colorido racial e do tipo mais cruamente desigualitário que se possa conceber. 

O espantoso é que os brasileiros, orgulhosos de sua tão proclamada, como falsa, "democracia racial", raramente percebem os profundos abismos que aqui separam os estratos sociais. O mais grave é que esse abismo não conduz a conflitos tendentes a transpô-lo, porque se cristalizam num modus vivendi que aparta os ricos dos pobres, como se fossem castas e guetos. Os privilegiados simplesmente se isolam numa barreira de indiferença para com a sina dos pobres, cuja miséria repugnante procuram ignorar ou ocultar numa espécie de miopia social, que perpetua a alternidade. O povo-massa, sofrido e perplexo, vê a ordem social como um sistema sagrado que privilegia uma minoria contemplada por Deus, à qual tudo é consentido e concedido. Inclusive o dom de serem, às vezes, dadivosos, mas sempre frios e perversos e, invariavelmente, imprevisíveis. 

Darcy Ribeiro, 
O Povo Brasileiro - A formação e o Sentido do Brasil

terça-feira, 22 de abril de 2014

Maquina Mundana

Willian Ferreira
Afinal de contas, eu tinha feito tudo que me havia proposto na vida. Dera os passos certos. Não dormia na rua. Claro, havia um bocado de gente boa dormindo nas ruas. Não eram idiotas, apenas não se encaixavam na maquinaria necessária no momento. E essas necessidades viviam mudando. Era uma luta desigual, e se a gente dormia na própria cama já era uma preciosa vitória contra as forças. Eu tivera sorte, mas alguns dos passos que dera não os dera inteiramente sem pensar. Em geral, porém, era um mundo horrível, e eu muitas vezes me sentia tristes pelos outros.

Bem, ao diabo com isso. Peguei a vodca e tomei um trago.

— BukowskiI, Charles. Pulp.

domingo, 20 de abril de 2014

Doce Ilusão

Leonid Afremov
Wilhemlm, o que seria de nosso coração num mundo sem amor? O mesmo que uma lanterna mágica sem luz! Mal você coloca a lâmpada lá dentro, aparecem as imagens multicoloridas em sua parede branca! E mesmo que isso não passe de uma ilusão passageira, continuará fazendo nossa felicidade, sempre que estivermos diante dela, como jovens inocentes, encantados com as maravilhosas aparições. 


- J. W. Goethe, 
in Os Sofrimentos do Jovem Werther. 

domingo, 13 de abril de 2014

Mulheres

Edward Hopper - Reclining nude, 1924
"Há mulheres que, por mais que as pesquisemos, não têm interior, são puras máscaras. É digno de pena o homem que se envolve com estes seres quase espectrais, inevitavelmente insatisfatórios, mas precisamente elas são capazes de despertar da maneira mais intensa o desejo do homem: ele procura a sua alma - e continua procurando para sempre." 

Friedrich Nietzsche - Humano, Demasiado Humano,

quinta-feira, 27 de março de 2014

Cansaço

Edward Hopper - Sunday, 1926
















Não venhas sentar-te à minha frente, nem a meu lado;
        Não venhas falar, nem sorrir.
Estou cansado de tudo, estou cansado
        E quero só dormir.

Dormir até acordado, sonhando
        Ou até sem sonhar,
Mas envolto num vago abandono brando
        A não ter que pensar.

Nunca soube querer, nunca soube sentir, até
        Pensar não foi certo em mim.
Deitei fora entre ortigas o que era a minha fé,
        Escrevi numa página em branco, «Fim».

As princesas incógnitas ficaram desconhecidas,
        Os tronos prometidos não tiveram carpinteiro
Acumulei em mim um milhão difuso de vidas,
        Mas nunca encontrei parceiro.

Por isso, se vieres, não te sentes a meu lado, nem fales,
        Só quero dormir, uma morte que seja
Uma coisa que me não rale nem com que tu te rales —
        Que ninguém deseja nem não deseja.

Pus o meu Deus no prego. Embrulhei em papel pardo
        As esperanças e ambições que tive,
E hoje sou apenas um suicídio tardo,
        Um desejo de dormir que ainda vive.

Mas dormir a valer, sem dignificação nenhuma,
        Como um barco abandonado,
Que naufraga sozinho entre as trevas e a bruma
        Sem se lhe saber o passado.

E o comandante do navio que segue deveras
        Entrevê na distância do mar
O fim do último representante das galeras,
        Que não sabia nadar.

Fernando Pessoa

domingo, 16 de março de 2014

O que me dói...


O que me dói não é
O que há no coração
Mas essas coisas lindas
Que nunca existirão...

São as formas sem forma
Que passam sem que a dor
As possa conhecer
Ou as sonhar o amor.

São como se a tristeza
Fosse árvore e, uma a uma,
Caíssem suas folhas
Entre o vestígio e a bruma.

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

quarta-feira, 12 de março de 2014

Eu e o Nada

Divorciei-me do mundo lentamente. Vi grandes construções ruírem, desabarem, sem restar pedra sobre pedra. Vi morrer lentamente os seus arquitetos. Ilusões destruídas pelas duras marteladas da verdade. Deparei-me com o nada - de homem para abismo e de abismo para homem. Só então pude compreender. O mundo que deixou de ser familiar, nunca existiu senão como ilusão. Eu era o fantasma de mim mesmo. Agora, diante do abismo da indeterminação, reconheço minha única condição - condenado a ser livre. Abrem-se diante de mim todos os caminhos. Não mais um fantasma. Agora um autêntico homem!

Alan Teixeira

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

A Insuficiência da Técnica

"Não será que em vez de correr atrás dos artefatos da época, na forma de positivismo lógico e epistemologia, o pensamento deveria assumir um outro caráter? Sem dúvida que não poderemos saltar para fora do mundo técnico. Ele constitui uma condição necessária da e para a existência moderna. Mas não é uma condição suficiente. Pois em sua insuficiência não atinge horizonte a partir do qual a existência do homem poderá talvez vir a ser libertada."

Martin Heidegger

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Restauradores da Humanidade

"A violência dos opressores, que os faz também desumanizados, não instaura uma outra vocação - a dor ser menos. Como distorção do ser mais, o ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sentem idealisticamente opressores, nem se tornam, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade de ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos - libertar-se a si e aos opressores "

- Paulo Freire, 
Pedagogia do Oprimido
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