"A literatura tem essa magia de nos tornar contemporâneos de quem quisermos." (Inês Pedrosa)

quinta-feira, 27 de março de 2014

Cansaço

Edward Hopper - Sunday, 1926
















Não venhas sentar-te à minha frente, nem a meu lado;
        Não venhas falar, nem sorrir.
Estou cansado de tudo, estou cansado
        E quero só dormir.

Dormir até acordado, sonhando
        Ou até sem sonhar,
Mas envolto num vago abandono brando
        A não ter que pensar.

Nunca soube querer, nunca soube sentir, até
        Pensar não foi certo em mim.
Deitei fora entre ortigas o que era a minha fé,
        Escrevi numa página em branco, «Fim».

As princesas incógnitas ficaram desconhecidas,
        Os tronos prometidos não tiveram carpinteiro
Acumulei em mim um milhão difuso de vidas,
        Mas nunca encontrei parceiro.

Por isso, se vieres, não te sentes a meu lado, nem fales,
        Só quero dormir, uma morte que seja
Uma coisa que me não rale nem com que tu te rales —
        Que ninguém deseja nem não deseja.

Pus o meu Deus no prego. Embrulhei em papel pardo
        As esperanças e ambições que tive,
E hoje sou apenas um suicídio tardo,
        Um desejo de dormir que ainda vive.

Mas dormir a valer, sem dignificação nenhuma,
        Como um barco abandonado,
Que naufraga sozinho entre as trevas e a bruma
        Sem se lhe saber o passado.

E o comandante do navio que segue deveras
        Entrevê na distância do mar
O fim do último representante das galeras,
        Que não sabia nadar.

Fernando Pessoa

domingo, 16 de março de 2014

O que me dói...


O que me dói não é
O que há no coração
Mas essas coisas lindas
Que nunca existirão...

São as formas sem forma
Que passam sem que a dor
As possa conhecer
Ou as sonhar o amor.

São como se a tristeza
Fosse árvore e, uma a uma,
Caíssem suas folhas
Entre o vestígio e a bruma.

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

quarta-feira, 12 de março de 2014

Eu e o Nada

Divorciei-me do mundo lentamente. Vi grandes construções ruírem, desabarem, sem restar pedra sobre pedra. Vi morrer lentamente os seus arquitetos. Ilusões destruídas pelas duras marteladas da verdade. Deparei-me com o nada - de homem para abismo e de abismo para homem. Só então pude compreender. O mundo que deixou de ser familiar, nunca existiu senão como ilusão. Eu era o fantasma de mim mesmo. Agora, diante do abismo da indeterminação, reconheço minha única condição - condenado a ser livre. Abrem-se diante de mim todos os caminhos. Não mais um fantasma. Agora um autêntico homem!

Alan Teixeira
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