"A literatura tem essa magia de nos tornar contemporâneos de quem quisermos." (Inês Pedrosa)

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Janeiro, 7 - A Neta

Janeiro, 7

A Neta

Soledad, a neta de Rafael Barrett, costumava recordar uma frase do avô:
- Se o Bem não existe, é preciso inventá-lo.
            Rafael, paraguaio por escolha própria, revolucionário por vocação, passou mais tempo na cadeia que em casa, e morreu no exílio. 
A neta foi crivada a balas no Brasil, no dia hoje de 1973. 
O cabo Anselmo, marinheiro insurgente, chefe revolucionário, foi quem a entregou. 
Cansado de ser perdedor, arrependido de tudo o que acreditava e gostava, ele delatou um por um seus companheiros de luta contra a ditadura militar brasileira, e os despachou para o suplício ou matadouro. 
Soledad, que era sua mulher, ele deixou para o fim. 
O cabo Anselmo apontou o lugar onde ela se escondia e foi-se embora.
Já estava no aeroporto quando ouviram-se os primeiros tiros. 

Os Filhos dos Dias, 
por Eduardo Galeano

sábado, 1 de outubro de 2016

A Saia Almarrotada

Na minha vila, a única vila do mundo, as mulheres sonhavam com vestidos novos para saírem. Para serem abraçadas pela felicidade. A mim, quando me deram a saia de rodar, eu me tranquei em casa. Mais que fechada, me apurei invisível, eternamente nocturna. Nasci para cozinha, pano e pranto. Ensinaram-me tanta vergonha em sentir prazer, que acabei sentindo prazer em ter vergonha.

Belezas eram para as mulheres de fora. Elas desencobriam as pernas para maravilhações. Eu tinha joelhos para descansar as mãos. (...)

Mia Couto, 
O Fio das Miçangas 


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