"A literatura tem essa magia de nos tornar contemporâneos de quem quisermos." (Inês Pedrosa)

domingo, 25 de julho de 2010

Espírito Livre

Desse isolamento doentio, do deserto desses anos de experiências, o caminho ainda é longo até aquela imensa segurança e transbordante saúde, que não pode prescindir da própria doença como meio e anzol de conhecimento, até essa liberdade amadurecida do espírito, que é também autodomínio e disciplina do coração e que permite o acesso para maneiras de pensar múltiplas e opostas; até esse estado interior, saturado e repleto do excesso de riquezas, que exclui o perigo de que o espírito se perca, por assim dizer, a si mesmo em seus próprios caminhos e fique inebriado em algum recanto; até essa superabundância que confere ao espírito livre o perigoso privilégio de poder viver a título de experiência e se entregar à aventura: o privilégio de domínio do espírito livre!"

(Nietzsche - Humano, Demasiado Humano)

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Das desilusões

"Nos anos da juventude venera-se ou despreza-se e paga-se, com justiça, muito caro o ter assaltado deste modo as coisas e as pessoas com sim e não... até que o homem aprenda a pôr um pouco de arte nos seus sentimentos e prefira ousar fazer uma tentativa com o artificial: tal como o fazem os verdadeiros artistas da vida: a juventude, já de si, é algo que engana e falseia. Mais tarde, quando a alma jovem, martirizada por mil desilusões, se volta por fim, desconfiada, contra si mesma, ardente e selvagem ainda, mesmo nas suas suspeitas e remorsos: como se encoleriza consigo mesmo, como se dilacera com impaciência, como se vinga da sua longa cegueira, como se ela tivesse sido voluntária!"

(Friedrich Nietzsche)

[Imagem: Van Gogh]

domingo, 18 de julho de 2010

Ser Vir-a-ser...

Sou Sisifo, condenado a ser livre,
Sou Perseu, assumo meu destino!
Sou o fluir na vazão de um rio
Até o oceano vir-a-ser um e mil...

Sou Nero botando fogo no circo,
Sou o Circo que Nero bota fogo
Sou o Fogo no Circo e em Nero,
Sou Nero, Circo e Fogo!

O que encontrei no caminho
Foi um caminho que era meu...
Carrego muito do outro comigo
Que já nem sei mais o que é meu!


(Alan Silva)

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Poetas, esses marcianos...

Há muito que os marcianos

Invadiran o mundo:

São os poetas e

Como não sabem nada de nada

Limitam-se a ter os olhos

Muito abertos

E a disponibilidade

De um marinheiro em terra...

Eles não sabem nada nada

- E só por isso

É que descobrem tudo.


(Mário Quintana)

sábado, 10 de julho de 2010

Da encantadora humanidade nossa

O que há de mais encantador em alguém são os medos disfarçados, implícitos ou negados, admitidos num ato extremo de cumplicidade e desamparo. Ou os pecados gozosos, dolorosos, gloriosos, mortais, veniais, vergonhosos, claro, confessados e com convite subentendido a partilhar, elaborar, dividir a culpa que deixamos de sentir, rir juntos, aperfeiçoar, aprender requintes e nos absolvermos mutuamente. Ou os vícios inofensivos ou perigosos, ou as inseguranças, ah meu deus, que lindas são as inseguranças, aquelas medidas das potências tão menores e insuspeitas, que nos aproximam e nos deixam reconhecer por trás do personagem metálico e frio. O que há de mais encantador em alguém é sua própria humanidade admitida e compartilhada, sem receio de que o outro faça disso uma arma mortal, mas ao contrário, com o desejo quase crescente de encontrar o eco de um mesmo grito, a sede de uma outra sede igual, o reflexo familiar do outro lado do espelho.

(Manoel de Barros)

terça-feira, 6 de julho de 2010

Versos...

A cada amanhecer
Rondava-me um dilema:
Passei anos tentando escrever
o mais belo poema...
Na busca pude perceber
que os mais lindos versos
andam dispersos...
Na alma de cada Ser...

(Ferluthe) 



[Imagem: Van Gogh]

sábado, 3 de julho de 2010

Despertar

Parece às vezes que desperto
E me pergunto o que vivi;
Fui claro, fui real, é certo,
Mas como é que cheguei aqui?
A bebedeira às vezes dá
Uma assombrosa lucidez
Em que como outro a gente está.
Estive ébrio sem beber talvez.

E de aí, se pensar, o mundo
Não será feito só de gente
No fundo cheia de este fundo
De existir clara e èbriamente?

Entendo, como um carrocel;
Giro em meu torno sem me achar...
(Vou escrever isto num papel
Para ninguém me acreditar...) 

(Fernando Pessoa)

[Imagem: Picasso]
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