"A literatura tem essa magia de nos tornar contemporâneos de quem quisermos." (Inês Pedrosa)

sábado, 6 de abril de 2019

Minha Biografia


"Se, depois de eu morrer, quiserem escrever minha biografia,
Não há nada mais simples
Tem só duas datas - a do meu nascimento e a da minha morte.
Entre uma e outra coisa todos os dias são meus."

Poemas Inconjuntos,
Alberto Caieiro

terça-feira, 2 de abril de 2019

Elogio das Lágrimas



Chorar: Propensão particular do sujeito apaixonado para chorar: m odos de aparecimento e função das lágrimas nesse sujeito. 

1. A mais pequena emoção de amor, feliz ou triste, põe Werther em lágrimas. Werther chora muito, muitas vezes, e abundantemente. Em Werther é o apaixonado que chora ou o romântico?

Talvez seja uma disposição própria do tipo apaixonado a de se deixar levar pelas lágrimas? Submisso ao Imaginário, é-lhe indiferente a censura que mantém hoje o adulto longe das lágrimas e pela qual o homem ouve manifestar a sua virilidade (satisfação e enternecimento maternal de Piaf: "Mas chorais, meu Senhor!"). Libertando as lágrimas sem constrangimento, cumpre ordens do corpo apaixonado, que é um corpo banhado em expansão líquida: chorarmos juntos, afundarmo-nos juntos: lágrimas deliciosas encerram a leitura de Klopstock que Carlota e Werther fazem em conjunto. Onde adquire o apaixonado o direito de chorar a não ser numa inversão de valores de que o corpo é o primeiro alvo? Ele aceita encontrar o corpo infantil. 

Além disso, aqui, o corpo apaixonado está duplicado num corpo histórico. Quem fará a história das lágrimas? Em que sociedades, em que tempo, se chorou? Desde quando os homens (e não as mulheres) já não choram? Porque se transformou a sensibilidade, num dado momento, em pieguice? As imagens da virilidade são moventes: os Gregos, as pessoas do século XVII, choravam muito no teatro. S. Luís, no dizer de Michelet, sofria por não ter sabido o dom das lágrimas; ao sentir as lágrimas correr docemente pelo rosto, "pareceram-lhe tão saborosas e muito doces, não só ao coração mas também à boca". 

(Do mesmo modo: em 1919, um jovem monge pôs-se a caminho rumo a uma abadia cisterciense, no Brabante, para obter pelas suas preces o dom das lágrimas.)

(Problema nietzscheano: como se combinam a História e o Tipo? Não pertence ao tipo formular - formar - o não actual da História? Nas próprias lágrimas do apaixonado, a nossa sociedade reprime o seu próprio não actual, fazendo assim do apaixonado que chora um objeto perdido cujo recalcamento é necessário à sua saúde. No filme La Marquise d'O, chora-se e as pessoas riem.)

2. Talvez chorar seja demasiado grosseiro; talvez não seja necessário remeter todos os choros para um mesmo significado; talvez haja no apaixonado vários sujeitos que se dedicam de maneiras próximas, mas diferentes, a chorar. Quem é o "eu" que tem "lágrimas nos olhos"? Quem é esse outro que, certo dia, "rompeu em lágrimas"? Quem sou eu, eu que choro "todas as lágrimas do meu corpo"? ou que verto, ao acordar, "uma torrente de lágrimas"? Se tenho tantas maneiras de chorar, é talvez porque, quando choro, me dirijo a alguém e o destinatário das minhas lágrimas não é sempre o mesmo: adapto as minhas maneiras de chorar ao tipo de chantagem que, pelas minhas lágrimas, oiço exercer à minha volta. 

3. Ao chorar, quero impressionar alguém, fazer pressão sobre ele ("Vê o que fazes de mim"). Pode ser - e é-o normalmente - o outro quem se constrange assim a demonstrar abertamente a sua comiseração ou a sua insensibilidade; mas posso também ser eu próprio: obrigo me a chorar para provar a mim mesmo que a minha dor não é uma ilusão: as lágrimas são signos, não expressões. Pelas minhas lágrimas, conto uma história, elaboro um mito de dor e então habituo-me: posso viver com ela, porque ao chorar, ofereço a mim próprio um interlocutor enfático que recolhe a mais "verdadeira" das mensagens, do meu corpo, não a da minha língua: "As palavras, o que são? Uma lágrima dirá mais". 

Roland Barthers, 
Fragmentos de um discurso amoroso
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