"A literatura tem essa magia de nos tornar contemporâneos de quem quisermos." (Inês Pedrosa)

sábado, 21 de dezembro de 2013

Tempos de Grande Perigo

“São os tempos de grande perigo em que aparecem os filósofos. Então, quando a roda rola com sempre mais rapidez, eles e a arte tomam o lugar dos mitos em extinção. Mas projetam-se muito à frente, pois só muito devagar a atenção dos contemporâneos para eles se volta”.

Friedrich Nietzsche
in Vontade de Poder


sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

O Pretenso Isolamento: Razão x Emoção

“Saídos de um época transacta da representação, estamos ainda habituados a separar a cabeça e o coração e a considerar o pensamento e a sensibilidade, ou seja qual for o nome que a tal diferença se dê, quase como duas entidades independentes e entre si indiferentes; o influxo do ensino no carácter surge então como longínquo ou casual. Mas, na realidade, o espírito humano, que é um só, não alberga em si naturezas tão díspares; em toda a unilateralidade, que nele é possível e que se refere apenas às forças singulares subordinadas, mais distantes da raiz do seu ser, essas diferenças profundas, que se reúnem imediatamente no seu íntimo, não se podem desagregar nesse pretenso isolamento.”

Georg W. F. Hegel,
14 de Setembro de 1810

domingo, 15 de dezembro de 2013

Novos Fundamentos

Fatima Seehagen
O "movimento" próprio das ciências se desenrola através da revisão mais ou menos radical e, para elas próprias, não transparente dos conceitos fundamentais. O nível de uma ciência determina-se pela sua capacidade de sofrer uma crise em seus conceitos fundamentais. Nessas crises imanentes da ciência, vacila e se vê abalado o relacionamento das investigações positivas com as próprias coisas questionadas. Hoje em dia, surgem tendências em quase todas as disciplinas no sentido de colocar as pesquisas em novos fundamentos. 

Martin Heidegger, 
Ser e Tempo

sábado, 14 de dezembro de 2013

Ética e Felicidade

"Esta investigação diz respeito ao que há de mais importante: viver para o bem, ou viver para o mal." Sócrates, ao dialogar assim com Glauco sobre as razões do infortúnio dos tiranos, não poderia dizer melhor. Com efeito, o que pode existir de mais valioso na vida, quer dos indivíduos, quer dos povos, senão alcançar a felicidade? Pois é disto exatamente que se trata quando falamos em ética. Podemos errar de caminho na nossa vida, e nos embrenharmos perdidamente, como Dante, na selva da escuridão. Jamais nos enganaremos, porém, quanto à escolha do nosso destino: nunca se ouviu falar de alguém que tivesse a infelicidade por propósito ou programa de vida. 

Fábio Konder Comparato, 
Ética

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

A Vida e o Saber


Leonid Afremov
O mero filósofo é geralmente uma personalidade pouco admissível no mundo, pois supõe-se que ele em nada contribui para o benefício ou para o prazer da sociedade, porquanto vive distante de toda comunicação com os homens e envolto em princípios e noções igualmente distantes de sua compreensão. Por outro lado, o mero ignorante é ainda mais desprezado, pois não há sinal mais seguro de um espírito grosseiro, numa época e uma nação em que as ciências florescem, do que permanecer inteiramente destituído de toda espécie de gosto por estes nobres entretenimentos. Supõe-se que o caráter mais perfeito se encontra entre estes dois extremos: conserva igual capacidade e gosto para os livros, para a sociedade e para os negócios; mantém na conversação discernimento e delicadeza que nascem da cultura literária; nos negócios, a probidade e a exatidão que resultam naturalmente de uma filosofia conveniente. Para difundir e cultivar um caráter tão aperfeiçoado, nada pode ser mais útil do que as composições de estilo e modalidade fáceis, que não se afastam em demasia da vida, que não requerem, para ser compreendidas, profunda aplicação ou retraimento e que devolvem o estudante para o meio de homens plenos de nobres sentimentos e de sábios preceitos, aplicáveis em qualquer situação da vida humana. Por meio de tais composições, a virtude toma-se amável, a ciência agradável, a companhia instrutiva e a solidão um divertimento.

David Hume, 
Investigações Acerca do Entendimento Humano

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Esclarecimento

Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado desta menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento. 

Immanuel Kant

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Cantares















Tudo passa e tudo fica
porém o nosso é passar,
passar fazendo caminhos
caminhos sobre o mar

Nunca persegui a glória
nem deixar na memória
dos homens minha canção
eu amo os mundos sutis
leves e gentis,
como bolhas de sabão

Gosto de ver-los pintar-se
de sol e grená, voar
abaixo o céu azul, tremer
subitamente e quebrar-se…

Nunca persegui a glória

Caminhante, são tuas pegadas
o caminho e nada mais;
caminhante, não há caminho,
se faz caminho ao andar

Ao andar se faz caminho
e ao voltar a vista atrás
se vê a senda que nunca
se há de voltar a pisar

Caminhante não há caminho
senão há marcas no mar…

Faz algum tempo neste lugar
onde hoje os bosques se vestem de espinhos
se ouviu a voz de um poeta gritar
“Caminhante não há caminho,
se faz caminho ao andar”…

Golpe a golpe, verso a verso…

Morreu o poeta longe do lar
cobre-lhe o pó de um país vizinho.
Ao afastar-se lhe viram chorar
“Caminhante não há caminho,
se faz caminho ao andar…”

Golpe a golpe, verso a verso…

Quando o pintassilgo não pode cantar.
Quando o poeta é um peregrino.
Quando de nada nos serve rezar.
“Caminhante não há caminho,
se faz caminho ao andar…”

Golpe a golpe, verso a verso.

(Antonio Machado)

(Tradução de Maria Teresa Almeida Pina)

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Em Defesa da Ética

Daí a crítica permanentemente presente em mim à malvadez neoliberal, ao cinismo de sua ideologia fatalista e a sua recusa inflexível ao sonho e à utopia. Daí o tom de raiva, legítima raiva, que envolve o meu discurso quando me refiro às injustiças a que são submetidos os esfarrapados do mundo. Daí o meu nenhum interesse de, não importa que ordem, assumir um ar de observador imparcial, objetivo, seguro,  dos fatos e dos acontecimentos. Em tempo algum pude ser um observador "acinzentadamente" imparcial, o que, porém, jamais me afastou de uma posição rigorosamente ética. Quem observa o faz de um certo ponto de vista, o que não situa o observador em erro. O erro na verdade não é ter um certo ponto de vista, mas absolutizá-lo e desconhecer que, mesmo do acerto de seu ponto de vista é possível que a razão ética nem sempre esteja com ele. 

Paulo Freire,
Pedagogia da Autonomia

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

A pena da galhofa à melancolia

AO VERME

QUE

PRIMEIRO ROEU

AS FRIAS CARNES 

DO MEU CADÁVER 

DEDICO 

COMO SAUDOSA LEMBRANÇA 

ESTAS 

MEMÓRIAS PÓSTUMAS

Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, coisa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinquenta, nem vinte, e quanto muito, dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião.
Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote.
Machado de Assis,
Memórias Póstumas de Bras Cubas

domingo, 3 de novembro de 2013

A estupidez do direito

kandinskyy
Em geral, o direito é tão estúpido quanto os imperativos que estabelece. Mas o pior é quando legaliza situações que são legais por si só:

o direito à água, direito ao ar, direito ao desejo, direito à paternidade.

O que quer dizer, aliás, do "direito à vida"? Se é que ele expressa o que quer dizer, significa que a vida perdeu realmente sua evidência.

O direito acaba agindo como invocação desesperada das qualidades perdidas. É assim que se verá, provavelmente logo, surgir face à extensão da estupidez, um " direito à inteligência".


Jean Baudrillard

sábado, 2 de novembro de 2013

Paz...

Edward Hopper
E de fato você me recrimina por isso como se fosse culpa minha, como se por acaso eu tivesse podido, com uma virada do volante, conduzir tudo para outra direção, ao passo que você não tem a mínima culpa, a não ser talvez o fato de ter sido bom demais para mim. 

Esse seu modo usual de ver as coisas eu só considero justo na medida em que também acredito que você não tem a menor culpa pelo nosso distanciamento. Mas eu também não tenho a menor culpa. Se pudesse levá-lo a reconhecer isso, então seria possível, não uma nova vida - para tanto nós dois estamos velhos demais - mas sem dúvida uma espécie de paz...

- Franz Kafka, 
Carta ao Pai

domingo, 13 de outubro de 2013

Amo, não menos o homem, mas mais a Natureza...

Há um prazer nas florestas desconhecidas: Um entusiasmo na costa solitária: Uma sociedade onde ninguém penetra. Pelo mar profundo e música em seu rugir:  Amo, não menos o homem, mas mais a Natureza...

Lord Byron

sábado, 21 de setembro de 2013

O Cansaço de todas as hipóteses...

Edvard Munch, Golgotha, 1900
O campo é onde não estamos. Ali, só ali, há sombras verdadeiras e verdadeiro arvoredo. 

A vida é a hesitação entre uma exclamação e uma interrogação. Na dúvida, há um ponto final.

O milagre é a preguiça de Deus, ou, antes, a preguiça que Lhe atribuímos, inventando o milagre.

Os Deuses são a encarnação do que nunca poderemos ser.


O cansaço de todas as hipóteses...

Fernando Pessoa, 
Livro do Desassossego

domingo, 8 de setembro de 2013

O que significa Ciência?

Homem Vitruviano - L. da Vince
Mas o que significa ciência? Eis aí uma questão que frequentemente tem sido formulada - e respondida. 
Eu diria, a respeito dos cientistas, que, quando surge um vazio no conhecimento, o cientista não se desvia para uma explicação sobrenatural. Isso poderia sugerir pânico, medo do desconhecido, uma atitude não-científica. Para o cientista, todo vazio no entendimento oferece um desafio excitante. Assume-se a ignorância, e se delineia um programa de pesquisa. A existência do vazio é o estímulo para o trabalho. O cientista pode se permitir uma espera e se permitir ser ignorante. Isso significa que ele tem algum tipo de fé – não uma fé nisto ou naquilo, mas uma fé, ou uma capacidade para a fé. “Não sei. Tudo bem! Talvez algum dia eu venha a saber. Talvez não. Então, talvez alguma outra pessoa venha a saber.
Para o cientista, formular questões é quase tudo. As repostas, quando aparecem, apenas conduzem a outras questões. A ideia do conhecimento acabado é o pesadelo do cientista. Ele estremece só de pensar numa coisa dessas.

            D.W. Winnicott,
Tudo Começa em Casa



sábado, 24 de agosto de 2013

A minha arte é ser eu

A minha arte é ser eu. Eu sou muitos. Mas, com o ser muitos, sou muitos em fluidez e imprecisão. Se faço estas análises de um modo lasso e casual, não é senão porque assim retrato mais o que sou. De uma análise propriamente profunda não só sou incapaz, mas sou também artista de mais para a pensar em fazer; pensar em faze-la seria pensar em dar de mim a ideia de que sou uma criatura disciplinada e coerente, quando o que sou é um analisador disperso e subtilmente desconcentrado. A minha arte é ser eu. Eu sou muitos. Mas, com o ser muitos, sou muitos em fluidez e imprecisão.

Muitos crêem coisas falsas ou incompletas de mim; e eu, falando com eles, faço tudo por deixa-los continuar nessa crença. Perante um que me julgue um mero crítico, eu só falo crítica. A princípio fazia isto espontaneamente. Depois decidi que isto era porque, no meu perpétuo anseio de não levantar atritos, (…)

Fernando Pessoa

domingo, 18 de agosto de 2013

Word's Lonely

"Seria bom poder discutir o que propus. Às vezes, quando a aula não foi boa, bastaria pouca coisa, uma pergunta, para pôr tudo no devido lugar. Mas essa pergunta nunca vem. De fato, na França, o efeito de grupo torna qualquer discussão real impossível. E, como não há canal de retorno, o curso se teatraliza. Tenho com as pessoas que estão aqui uma relação de ator ou de acrobata. E, quando termino de falar, uma sensação de total solidão..."

- Michel Foucault, 
Nascimento da Biopolítica

sábado, 3 de agosto de 2013

Interpretação e Superinterpretação

“Algumas teorias da crítica contemporânea afirmam que a única leitura confiável de um texto é uma leitura equivocada, que a existência de um texto só é dada pela cadeia de respostas que evoca e que, como Todorov sugeriu maliciosamente (citando Lichtenberg a propósito de Boehme), um texto é apenas um piquenique onde o autor entra com as palavras e os leitores com o sentido.

Mesmo que isso fosse verdade, as palavras trazidas pelo autor são um conjunto um tanto embaraçoso de evidências materiais que o leitor não pode deixar passar em silêncio, nem em barulho. Se bem me lembro, foi aqui na Inglaterra que alguém sugeriu, anos atrás, que é possível fazer coisas com palavras. Interpretar um texto significa explicar por que essas palavras podem fazer várias coisas ( e não outras) através do modo pelo qual são interpretadas. Mas se Jack, o Estripador, nos dissesse que fez o que fez baseado em sua interpretação do Evangelho segundo São Lucas, suspeito que muitos críticos voltados para o leitor se inclinariam a pensar que ele havia lido São Lucas de uma forma despropositada.

Os críticos não voltados para o leitor diriam que Jack, o Estripador, estava completamente louco – e confesso que, mesmo sentindo muita simpatia pelo paradigma voltado para o leitor, e mesmo tendo lido Cooper, Laing e Guattari, muito a contragosto eu concordaria com que Jack, o Estripador, precisava de cuidados médicos.” 

Umberto Eco, 
Interpretação e Superinterpretação

sábado, 20 de julho de 2013

O Benefício da Dúvida

Jacques Resch
Dizem os sábios que a dúvida é nosso maior inimigo. Eu, que não sou um sábio, penso o contrário, que a dúvida é o nosso melhor aliado. É contra as nossas convicções que devemos declarar guerra. É contra as convicções a nossa maior batalha, que exige maior coragem e maior força de espírito. Pois as convicções é que são nossos inimigos mais perigosos, é por elas que se tem cometido as maiores injustiças, é por elas que desde sempre se tem morrido e matado, é por elas que se tem feito guerras. A dúvida é a porta estreita por onde o engano perece e a verdade se esgueira até o fim. Somente a vitória contra as convicções nos conduzirá para o verdadeiro reino de liberdade, onde não haverá motivo para matar ou morrer, senão a defesa de nossa liberdade. Este é o reino dos espíritos livres!

- Alan Teixeira

domingo, 14 de julho de 2013

A Arte de Governar

"Torna-se injusto e carente de legitimidade... o governo que se insurge contra a ideia matriz do grupo social ou que dela esquece, relegando-a a segundo plano, perdendo assim o senso de sua missão e transformando em violência contra a sociedade. Por isso, nem todos os homens são aptos a governar. A ciência e a arte de governar outros homens exige tal equilíbrio de julgamento, tal argúcia no enfoque dos problemas, tal desprendimento pessoal, tal humildade e ao mesmo tempo tal firmeza e audácia, que, dentro os grupos sociais, poucos são os que reúnem em si as qualidades de caráter, inteligência, prudência, imaginação, coragem, amor ao próximo, necessárias ao bom governo."

- Hilário Torloni,
Estudo de Problemas Brasileiros

domingo, 26 de maio de 2013

Vida e Morte

A Morte de Casagemas - Picasso
Partiu assim, de repente, sem avisar nem dar adeus. Não deixou um bilhete, também não levou nada. Seu relógio e seu óculos continuam intocáveis na cabeceira da cama, móveis inalterados, paredes intactas, tudo no seu lugar à espera do irretornável.  Era uma cinzenta tarde sábado, numa colisão frontal e um último apelo por Nossa Senhora, que o Sol se pôs mais cedo e não mais retornou. E assim meu pai se foi... para iluminar, talvez, outros mundos. 

Me deparo com o absurdo, o corpo relativamente intacto, porém irreconhecível. Irreconhecível não porque não fosse possível reconhecer a semelhança entre a pessoa a quem pertencia, mas por se parecer com uma cópia barata da vida, mas sem vida. E aquele ser que habitou aquele corpo, mas que também foi corpo por inteiro, desapareceu. E me pergunto incansavelmente pra onde foi?  Se aquela antiga lei de que nada se perde, apenas se transforma, também se aplica à imaterialidade do que somos. Não encontro resposta. E repousa sobre mim o duro fardo, a impossível tarefa que se impõe como um dever absurdo, de resolver este enigma. Como se fosse possível mover a terra de uma possível rota de colisão com algum astro errante. Todo esforço intelectual é inútil. A lógica opera impotente diante do enigma insolúvel da vida e da morte. Talvez o absurdo seja isso, impotência da razão diante do incompreensível. Num último esforço, quero apenas viver sem apelação. 

- Alan Teixeira da Silva

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Da Altiva Sabedoria


O ar leve e puro, o perigo próximo e o espírito cheio de uma alegre malícia, tudo isto se harmoniza bem. Eu quero ver duendes em torno de mim porque sou valoroso. O valor que afugenta os fantasmas cria os seus próprios duendes: o valor quer rir.
Eu já não sinto um uníssono convosco; essa nuvem que eu vejo abaixo de mim, esse negrume e carregamento de que me rio, é exatamente a vossa nuvem tempestuosa.
Vós olhais para o alto quando aspirais a vos elevar. Eu, como estou alto, olha para baixo.
Qual de vós pode estar alto e rir ao mesmo tempo?
O que escala elevados montes ri-se de todas as tragédias, as do teatro e as da vida.
Valorosos, despreocupados, zombeteiros, violentos, eis como nos quer a sabedoria. É mulher e só lutadores pode amar.
Vós me dizeis: ‘A vida é uma carga pesada’. Mas para que é esse vosso orgulho pela manhã e essa vossa submissão à tarde?
A vida é uma carga pesada; mas não vos mostreis tão delicados! Todos nós somos bons jumentos e mulas de carga.
Que parecença temos com o cálice de rosa que treme porque o oprime uma gota de orvalho?
É verdade: amamos a vida não porque estejamos acostumados a viver, mas porque estamos acostumados a amar.
Há sempre o seu quê de loucura no amor; mas também há sempre o seu quê de razão na loucura. E eu, que estou bem com a vida, creio que para saber de felicidade não há como as borboletas e as bolhas de sabão, e o que se lhes assemelhe entre os homens.
Ver revolutear essas almas aladas e loucas, encantadoras e buliçosas, é o que arranca a Zaratustra lágrimas e canções.
Eu só poderia crer num Deus que soubesse dançar.
E quando vi o meu demônio, pareceu-me sério, grave, profundo e solene: era o espírito do pesadume. Por ele caem todas as coisas.
Não é com raiva, mas com riso que se mata. Adiante! Matemos o espírito do pesadume!
Eu aprendi a andar; por conseguinte corro. Eu aprendi a vor; portanto não quero que me empurrem para me mudar de lugar.
Agora sou leve, agora vôo; agora vejo a mim mesmo por baixo de mim, agora dança em mim um Deus.”
Assim falou Zaratustra.

Friedrich Nietzsche,
Assim Falou Zaratustra

sábado, 20 de abril de 2013

Desobediência Civil

"Será que o cidadão deve, ainda que por um momento e em grau mínimo, abrir mão de sua consciência em prol do legislador? Nesse caso, por que cada homem dispõe de uma consciência? Penso que devemos ser primeiro homens, e só depois súditos. [...] A única obrigação [...] é a de fazer em qualquer tempo o que julgo ser correto."


- Henry David Thoreau, 
in Desobediência Civel

sábado, 13 de abril de 2013

Amizade


Contrato tácito entre duas pessoas sensíveis e virtuosas. Sensíveis porque um monge, um solitário, pode não ser ruim e viver sem conhecer a amizade. Virtuosas porque os maus não adjungem mais que cúmplices. Os voluptuosos careiam companheiros de devassidão. Os interesseiros reúnem sócios. Os políticos congregam partidários. O comum dos homens ociosos mantêm relações. Os príncipes têm cortesãos. Só os virtuosos possuem amigos.

Cétego era cúmplice de Catilina. Mecenas era cortesão de Otávio. Mas Cícero era amigo de Ático. Que estabelece esse convênio entre duas almas ternas e honestas? As obrigações são mais ou menos intensas consoante a sensibilidade de uma e de outra e o número de serviços prestados, etc. 

O entusiasmo da amizade foi mais forte entre gregos e árabes que entre nós. São admiráveis as histórias que teceram esses povos em torno deste sentimento. Não temos iguais. Somos em tudo um pouco secos.

A amizade era objeto de religião e legislação entre os gregos. Os tebanos tinham o regimento dos amantes. Magnífico regimento! Houve quem o tomasse por um regimento de sodomitas. Engano: seria tomar o acessório pelo essencial. A amizade era prescrita na Grécia pela lei e pela religião. Infelizmente tolerava-se a pederastia. Aliás: toleravam-na os costumes. É preciso não imputar à lei abusos vergonhosos. Voltaremos ao assunto.

Voltaire, 
Dicionário Filosófico

domingo, 10 de março de 2013

A um Bruxo, Com Amor


Em certa casa da Rua Cosme Velho
(que se abre no vazio)
venho visitar-te; e me recebes
na sala trajestada com simplicidade
onde pensamentos idos e vividos
perdem o amarelo
de novo interrogando o céu e a noite.

Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro.
Daí esse cansaço nos gestos e, filtrada,
uma luz que não vem de parte alguma
pois todos os castiçais
estão apagados.

Contas a meia voz
maneiras de amar e de compor os ministérios
e deitá-los abaixo, entre malinas
e bruxelas.
Conheces a fundo
a geologia moral dos Lobo Neves
e essa espécie de olhos derramados
que não foram feitos para ciumentos.

E ficas mirando o ratinho meio cadáver
com a polida, minuciosa curiosidade
de quem saboreia por tabela
o prazer de Fortunato, vivisseccionista amador.
Olhas para a guerra, o murro, a facada
como para uma simples quebra da monotonia universal
e tens no rosto antigo
uma expressão a que não acho nome certo
(das sensações do mundo a mais sutil):
volúpia do aborrecimento?
ou, grande lascivo, do nada?

O vento que rola do Silvestre leva o diálogo,
e o mesmo som do relógio, lento, igual e seco,
tal um pigarro que parece vir do tempo da Stoltz e do gabinete Paraná,
mostra que os homens morreram.
A terra está nua deles.
Contudo, em longe recanto,
a ramagem começa a sussurar alguma coisa
que não se estende logo
a parece a canção das manhãs novas.
Bem a distingo, ronda clara:
É Flora,
com olhos dotados de um mover particular
ente mavioso e pensativo;
Marcela, a rir com expressão cândida (e outra coisa);
Virgília,
cujos olhos dão a sensação singular de luz úmida;
Mariana, que os tem redondos e namorados;
e Sancha, de olhos intimativos;
e os grandes, de Capitu, abertos como a vaga do mar lá fora,
o mar que fala a mesma linguagem
obscura e nova de D. Severina
e das chinelinhas de alcova de Conceição.
A todas decifrastes íris e braços
e delas disseste a razão última e refolhada
moça, flor mulher flor
canção de mulher nova...
E ao pé dessa música dissimulas (ou insinuas, quem sabe)
o turvo grunhir dos porcos, troça concentrada e filosófica
entre loucos que riem de ser loucos
e os que vão à Rua da Misericórdia e não a encontram.
O eflúvio da manhã,
quem o pede ao crepúsculo da tarde?
Uma presença, o clarineta,
vai pé ante pé procurar o remédio,
mas haverá remédio para existir
senão existir?
E, para os dias mais ásperos, além
da cocaína moral dos bons livros?
Que crime cometemos além de viver
e porventura o de amar
não se sabe a quem, mas amar?

Todos os cemitérios se parecem,
e não pousas em nenhum deles, mas onde a dúvida
apalpa o mármore da verdade, a descobrir
a fenda necessária;
onde o diabo joga dama com o destino,
estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro,
que resolves em mim tantos enigmas.

Um som remoto e brando
rompe em meio a embriões e ruínas,
eternas exéquias e aleluias eternas,
e chega ao despistamento de teu pencenê.
O estribeiro Oblivion
bate à porta e chama ao espetáculo
promovido para divertir o planeta Saturno.
Dás volta à chave,
envolves-te na capa,
e qual novo Ariel, sem mais resposta,
sais pela janela, dissolves-te no ar.


Carlos Drummond de Andrade

sábado, 12 de janeiro de 2013

O isolamento


O isolamento talhou-me à sua imagem e semelhança. A presença de outra pessoa — de uma só pessoa que seja — atrasa-me imediatamente o pensamento, e, ao passo que no homem normal o contacto com outrem é um estímulo para a expressão e para o dito, em mim esse contacto é um contra-estímulo, se é que esta palavra composta é viável perante a linguagem. Sou capaz, a sós comigo, de idear quantos ditos de espírito, respostas rápidas ao que ninguém disse, fulgurações de uma sociabilidade inteligente com pessoa nenhuma; mas tudo isso se me some se estou perante um outrem físico, perco a inteligência, deixo de poder dizer, e, no fim de uns quartos de hora, sinto apenas sono. Sim, falar com gente dá-me vontade de dormir. Só os meus amigos espectrais e imaginados, só as minhas conversas decorrentes em sonho, têm uma verdadeira realidade e um justo relevo, e neles o espírito é presente como uma imagem num espelho.

Pesa-me, aliás, toda a ideia de ser forçado a um contacto com outrem. Um simples convite para jantar com um amigo me produz uma angústia difícil de definir. A ideia de uma obrigação social qualquer — ir a um enterro, tratar junto de alguém de uma coisa do escritório, ir esperar à estação uma pessoa qualquer, conhecida ou desconhecida —, só essa ideia me estorva os pensamentos de um dia, e às vezes é desde a mesma véspera que me preocupo, e durmo mal, e o caso real, quando se dá, é absolutamente insignificante, não justifica nada; e o caso repete-se e eu não aprendo nunca a aprender.

«Os meus hábitos são da solidão, que não dos homens»; não sei se foi Rousseau, se Senancour, o que disse isto. Mas foi qualquer espírito da minha espécie — não poderei talvez dizer da minha raça.

Fernando Pessoa,
Livro do Desassossego
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