Um homem com uma dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
como se chegasse atrasado
andasse mais adiante
carrega o peso da dor
como se portasse medalhas
uma coroa um milhão de dólares
ou coisa que os valha
ópios édens analgésicos
não me toquem nessa dor
ela é tudo que me sobra
sofrer, vai ser minha última obra
(Paulo Leminski)
“A única forma de suportar a existência é mergulhar na literatura como numa orgia perpétua” (Gustave Flaubert)
terça-feira, 28 de setembro de 2010
sábado, 25 de setembro de 2010
Todo Amor é desejo
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(John Delville) |
Todo amor é amor a alguma coisa, que se deseja e que nos falta. O amor não é completude, mas incompletude. Não fusão, mas busca. O amor é desejo, e desejo é falta. Mas só há desejo se a falta é percebida. E só há amor se o desejo se polariza sobre determinado objeto. Comer porque se tem fome é uma coisa, gostar do que se come, ou comer do que se gosta, é outra coisa. Desejar uma mulher, qualquer uma, é uma coisa. Desejar " esta mulher", é outra. Estaríamos apaixonados, no entanto, se desejássemos, de uma maneira ou de outra, aquele ou aquela que amamos? Sem dúvida não. Se nem todo desejo é amor, todo amor é desejo.
(André Comte Sponville)
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André Comte Sponville
É contra mim que luto...
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Monet |
Não tenho outro inimigo.
O que penso
O que sinto
O que digo
E o que faço
É que pede castigo
E desespera a lança no meu braço
Absurda aliança
De criança
E de adulto.
O que sou é um insulto
Ao que não sou
E combato esse vulto
Que à traição me invadiu e me ocupou
Infeliz com loucura e sem loucura,
Peço à vida outra vida, outra aventura,
Outro incerto destino.
Não me dou por vencido
Nem convencido
E agrido em mim o homem e o menino.
(Miguel Torga)
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Miguel Torga
quinta-feira, 23 de setembro de 2010
Inabitável
Eu hoje estou inabitável...
Não sei por quê,
levantei com o pé esquerdo:
o meu primeiro cigarro amargou
como uma colherada de fel;
a tristeza de vários corações bem tristes
veio, sem quê, nem por quê,
encher meu coração vazio...vazio...
Eu hoje estou inabitável...
A vida está doendo...doendo...
A vida está toda atrapalhada...
Estou sozinho numa estrada
fazendo a pé um raid impossível.
Ah! se eu pudesse me embebedar
e cambalear...cambalear...
cair, e acordar desta tristeza
que ninguém, ninguém sabe...
Todo mundo vai rir destes meus versos,
mas jurarei por Deus, se for preciso:
eu hoje estou inabitável...
(Abgar Renaul)
Não sei por quê,
levantei com o pé esquerdo:
o meu primeiro cigarro amargou
como uma colherada de fel;
a tristeza de vários corações bem tristes
veio, sem quê, nem por quê,
encher meu coração vazio...vazio...
Eu hoje estou inabitável...
A vida está doendo...doendo...
A vida está toda atrapalhada...
Estou sozinho numa estrada
fazendo a pé um raid impossível.
Ah! se eu pudesse me embebedar
e cambalear...cambalear...
cair, e acordar desta tristeza
que ninguém, ninguém sabe...
Todo mundo vai rir destes meus versos,
mas jurarei por Deus, se for preciso:
eu hoje estou inabitável...
(Abgar Renaul)
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Abgar Renaul
terça-feira, 21 de setembro de 2010
Há coisas que...
Há coisas que a minha alma, já mortificada não admite: assistir novelas de TV, ouvir música Pop, um filme apenas de corridas de automóvel, uma corrida de automóvel num filme, um livro de páginas ligadas porque, sendo bom, a gente abre sofregamente a dedo: espátulas não há... e quem é que hoje faz questão de virgindades...
E quando minha alma estraçalhada a todo instante pelos telefones fugir desesperada me deixará aqui, ouvindo o que todos ouvem, bebendo o que todos bebem, comendo o que todos comem.
A estes, a falta de alma não incomoda. (Desconfio até que minha pobre alma fora destinada ao habitante de outro mundo).
E ligarei o rádio a todo o volume, gritarei como um possesso nas partidas de futebol, seguirei, irresistivelmente, o desfilar das grandes paradas do Exército.
E apenas sentirei, uma vez que outra, a vaga nostalgia de não sei que mundo perdido...
E quando minha alma estraçalhada a todo instante pelos telefones fugir desesperada me deixará aqui, ouvindo o que todos ouvem, bebendo o que todos bebem, comendo o que todos comem.
A estes, a falta de alma não incomoda. (Desconfio até que minha pobre alma fora destinada ao habitante de outro mundo).
E ligarei o rádio a todo o volume, gritarei como um possesso nas partidas de futebol, seguirei, irresistivelmente, o desfilar das grandes paradas do Exército.
E apenas sentirei, uma vez que outra, a vaga nostalgia de não sei que mundo perdido...
(Mário Quintana)
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Mário Quintana
domingo, 19 de setembro de 2010
Nosso destino
Já nos queixamos alguma vez de sermos mal- compreendidos, desconhecidos, deformados, mal-ouvidos ou nem ouvidos? É precisamente este o nosso destino ... é este também nosso sinal de distinção... Confundem-nos - isto vem do fato de estarmos crescendo, em transformação contínua, trocando sempre a velha casca, em cada primavera nos abrimos de novo, sempre mais jovens... aprofundamos nossas raízes sempre com mais força no solo, enquanto ao mesmo tempo, abraçamos o céu sempre com mais amor, sempre mais amplamente... Crescemos como as árvores - o que é difícil compreender, tão difícil como toda a vida! Crescemos não numa única direção... porque não somos totalmente livres para fazer algo único, nem de ser algo único...
(Friedrich Nietzsche)
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Nietzsche
terça-feira, 14 de setembro de 2010
A maior solidão
"A maior solidão é a do ser que não ama. A maior solidão é a do se que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana. A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo, e que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro. O maior solitário é o que tem medo de amar, o que tem medo de ferir-se, o ser casto da mulher, do amigo, do povo, do mundo. Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entristece também tudo em torno. Ele é a angústia do mundo que o reflete. Ele se recusa às verdadeiras fontes da emoção, as que são o patrimônio de todos e, encerrado em seu duro privilégio, semeia pedras do alto de sua fria e desolada torre.
(Vinicius de Moraes: O Poeta Não Tem Fim.)
(Vinicius de Moraes: O Poeta Não Tem Fim.)
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Vinicius de Moraes
domingo, 12 de setembro de 2010
Sorriso
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Charlie Chaplin |
Sorriso, diz-me aqui o dicionário, é o acto de sorrir. E sorrir é rir sem fazer ruído e executando contracção muscular da boca e dos olhos.
O sorriso, meus amigos, é muito mais do que estas pobres definições, e eu pasmo ao imaginar o autor do dicionário no acto de escrever o seu verbete, assim a frio, como se nunca tivesse sorrido na vida. Por aqui se vê até que ponto o que as pessoas fazem pode diferir do que dizem. Caio em completo devaneio e ponho-me a sonhar um dicionário que desse precisamente, exactamente, o sentido das palavras e transformasse em fio-de-prumo a rede em que, na prática de todos os dias, elas nos envolvem.
Não há dois sorrisos iguais. Temos o sorriso de troça, o sorriso superior e o seu contrário humilde, o de ternura, o de cepticismo, o amargo e o irónico, o sorriso de esperança, o de condescendência, o deslumbrado, o de embaraço, e (por que não?) o de quem morre. E há muitos mais. Mas nenhum deles é o Sorriso.
O Sorriso (este, com maiúsculas) vem sempre de longe. É a manifestação de uma sabedoria profunda, não tem nada que ver com as contracções musculares e não cabe numa definição de dicionário. Principia por um leve mover de rosto, às vezes hesitante, por um frémito interior que nasce nas mais secretas camadas do ser. Se move músculos é porque não tem outra maneira de exprimir-se. Mas não terá? Não conhecemos nós sorrisos que são rápidos clarões, como esse brilho súbito e inexplicável que soltam os peixes nas águas fundas? Quando a luz do sol passa sobre os campos ao sabor do vento e da nuvem, que foi que na terra se moveu? E contudo era um sorriso.
O sorriso, meus amigos, é muito mais do que estas pobres definições, e eu pasmo ao imaginar o autor do dicionário no acto de escrever o seu verbete, assim a frio, como se nunca tivesse sorrido na vida. Por aqui se vê até que ponto o que as pessoas fazem pode diferir do que dizem. Caio em completo devaneio e ponho-me a sonhar um dicionário que desse precisamente, exactamente, o sentido das palavras e transformasse em fio-de-prumo a rede em que, na prática de todos os dias, elas nos envolvem.
Não há dois sorrisos iguais. Temos o sorriso de troça, o sorriso superior e o seu contrário humilde, o de ternura, o de cepticismo, o amargo e o irónico, o sorriso de esperança, o de condescendência, o deslumbrado, o de embaraço, e (por que não?) o de quem morre. E há muitos mais. Mas nenhum deles é o Sorriso.
O Sorriso (este, com maiúsculas) vem sempre de longe. É a manifestação de uma sabedoria profunda, não tem nada que ver com as contracções musculares e não cabe numa definição de dicionário. Principia por um leve mover de rosto, às vezes hesitante, por um frémito interior que nasce nas mais secretas camadas do ser. Se move músculos é porque não tem outra maneira de exprimir-se. Mas não terá? Não conhecemos nós sorrisos que são rápidos clarões, como esse brilho súbito e inexplicável que soltam os peixes nas águas fundas? Quando a luz do sol passa sobre os campos ao sabor do vento e da nuvem, que foi que na terra se moveu? E contudo era um sorriso.
(José Saramago)
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José Saramago
sábado, 11 de setembro de 2010
Metaforas
"Em certo país dava-se o nome de metáfora a qualquer recipiente próprio para conter algum líquido. Havia nesse país uma fonte de água cristalina, porém tão amarga que se dizia bastar um único gole para matar de desgosto um homem adulto; cria-se no entanto que diluída ou em pequenas doses esta água tinha propriedades mágicas ou medicinais, e deu-se a ela o nome de verdade.
Levas de peregrinos acorriam incessantemente à fonte, e partiam para seus lugares de origem levando a verdade em seus vasos metafóricos.
Porém uma rigorosa seita, que cria que a verdade deve ser experenciada sem o auxílio de metáforas, atacava as caravanas de peregrinos. Querendo ensiná-los a obter a verdade em estado puro, os sectários destruíam a pauladas as metáforas que continham. Quebrados os recipientes, a verdade se derramava e desaparecia no solo, ficando sem ela peregrinos e sectários.
Certa vez um rapaz voltava da fonte levando a verdade em sua metáfora quando viu de longe a aproximação dos sectários. Não querendo ver derramada a verdade que trazia consigo, o rapaz não hesitou e bebeu em goles resolutos a água da vasilha.
- Onde está a verdade que você trazia nessa metáfora? - perguntaram os perseguidores.
- Eu bebi - desafiou o rapaz - Agora a verdade está dentro de mim.
E os sectários mataram-no a pauladas. Em compensação, começou a correr a notícia de que a verdade, embora amarga, não era mortal, e que o recipiente próprio para conter a verdade era um ser humano. Com o passar do tempo os próprios homens passaram a ser chamados de metáforas, e conta-se que nunca estiveram mais perto da verdade."
(Paulo Brabo in "A Bacia das Almas")
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Paulo Brabo
segunda-feira, 6 de setembro de 2010
Amizade Estelar
Éramos amigos e agora somos estranhos um ao outro. Mas não importa que assim o seja: não procuremos escondê-lo ou calá-lo como se isso nos desse razão para nos envergonhar. Somos dois navios cada um dos quais com o seu objetivo e a sua rota particular; podemos cruzar-nos, talvez, e celebrar juntos uma festa, como já o fizemos - e esses corajosos barcos estavam lá tão tranquilos, debaixo do mesmo sol, no mesmo porto que se teria acreditado que tinha alcançado o objetivo, o mesmo destino.
Mas a onipotência das nossas tarefas separou-nos em seguida, empurrados para mares diferentes, debaixo de outros sóis - e talvez nunca mais nos voltemos a ver: mares diferentes, sóis diverso nos mudaram!
Era preciso que nos tornássemos estranhos um ao outro: era a lei que pesava entre nós... Há provavelmente uma formidável trajetória, uma pista invisível, uma órbita estelar, sobre a qual os nossos caminhos e os nossos objetivos diferentes estão inscritos como pequenas etapas; elevemo-nos até este pensamento. Porém, a nossa vida é demasiado curta e a nossa vista demasiado fraca para que possamos ser mais que amigos, no sentido em que o permite esta sublime possibilidade... Acreditemos, então, na nossa amizade estelar, mesmo se tivermos de ser inimigos na terra.
Mas a onipotência das nossas tarefas separou-nos em seguida, empurrados para mares diferentes, debaixo de outros sóis - e talvez nunca mais nos voltemos a ver: mares diferentes, sóis diverso nos mudaram!
Era preciso que nos tornássemos estranhos um ao outro: era a lei que pesava entre nós... Há provavelmente uma formidável trajetória, uma pista invisível, uma órbita estelar, sobre a qual os nossos caminhos e os nossos objetivos diferentes estão inscritos como pequenas etapas; elevemo-nos até este pensamento. Porém, a nossa vida é demasiado curta e a nossa vista demasiado fraca para que possamos ser mais que amigos, no sentido em que o permite esta sublime possibilidade... Acreditemos, então, na nossa amizade estelar, mesmo se tivermos de ser inimigos na terra.
(Friedrich Nietzsche, 279, Gaia Ciência)
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Nietzsche
domingo, 5 de setembro de 2010
Afinando e desafinando
...o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam, verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra de montão."
(Guimarães Rosa)
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Guimarães Rosa
sábado, 4 de setembro de 2010
Desmoronar progressivamante
A lucidez em alguns, é um dado primordial, um privilégio, e mesmo um dom. Não têm necessidade de adquiri-la, de procurá-la: são predestinados a ela. Todas as experiências contribuem para torná-los transparentes diante de si mesmos. Se vivem numa crise permanente, a aceitar com naturalidade: ela é imanente à sua existência. Em outros, a lucidez é um resultado tardio, o fruto de um acidente, de uma rachadura interior que ocorre em dado momento. Ao que tudo indica, viver é desmoronar progressivamente.
(Emil Cioran)
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Emil Cioran
sexta-feira, 3 de setembro de 2010
Amar a si mesmo
"... para se relacionar planamente com o outro, precisa primeiro de se relacionar consigo mesmo. Se não conseguimos abraçar a nossa própria solidão, usaremos simplesmente o outro como um escudo contra o isolamento. Só quando se consegue viver como a águia, sem absolutamente qualquer público, se consegue voltar para outra pessoa com amor; só então se é capaz de preocupar com o engrandecimento do outro ser humano."
(Irvin Yalom, Quando Nietzsche Chorou)
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Irvin Yalom
quinta-feira, 2 de setembro de 2010
Estupidez...
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Ben Gossens |
Deve-se tomar cuidado com a estupidez.
Sua denúncia é imediatamente reversível.
Impossível designá-la sem que ela o designe
também. Impossível apontar a estupidez sem
devolver à inteligência a sua arrogância. Perto
da inteligência, a estupidez se faz mais
estúpida. Nos confins da estupidez a inteligência
se faz mais sutil.
(Jean Baudrillard)
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Jean Baudrillard
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