"A literatura tem essa magia de nos tornar contemporâneos de quem quisermos." (Inês Pedrosa)

segunda-feira, 31 de maio de 2010

O Velho















O velho sem conselhos, de joelhos, de partida
Carrega com certeza todo o peso desta vida
Então eu lhe pergunto pelo amor:
A vida inteira, diz que se guardou, do carnaval, 
Da brincadeira que ele não brincou
Me diga agora o que é que eu digo ao povo
O que é que tem de novo pra deixar?
Nada só a caminhada longa, pra nenhum lugar.

O velho de partida deixa a vida sem saudades
Sem dívidas, sem saldo, sem rival ou amizade
Então eu lhe pergunto pelo amor:
Ele me diz que sempre se escondeu
Não se comprometeu, nem nunca se entregou
E diga agora o que é que eu digo ao povo
O que é que tem de novo pra deixar?
Nada e eu vejo a triste estrada
Onde um dia eu vou parar.

O velho vai-se agora, vai-se embora sem bagagem
Não se sabe pra que veio, foi passeio, foi passagem
Então eu lhe pergunto pelo amor, ele me é franco
Mostra um verso manco, de um caderno em branco
Que já se fechou
Me diga agora o que é que eu digo ao povo
O que é que tem de novo pra deixar?
Não, foi tudo escrito em vão
E eu lhe peço perdão
Mas não vou lastimar,
Não, não vou lastimar.

(Chico Buarque)
[Imagem: Been Goossens]

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada,
Aconchegada nos meus braços,
Que rio e danço
E invento exclamações alegres,
Porque a ausência, essa ausência assimilada,
Ninguém a rouba mais de mim. 

(Drummond)
[Imagem: John Singer Sargent]

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Raciocínio

Uma das regras fundamentais do raciocínio é distinguir o fundamental e o acidental em determinada teoria, distinguir a teoria essencial e a aplicação particular que um ou outro lhe dê. Assim, se discutirmos o problema da existência de Deus, devemos começar por definir o que se entende por Deus nesse problema. Se se entende, como é de presumir, um ente espiritual supremo, criador do mundo, então, nesse sentido, examinaremos o problema, não o misturando com o problema acidental da existência ou não existência de um Deus omnipotente, ou bom, ou infinito. Este último é um conceito particular de Deus, não o conceito geral. É concebível um ente criador finito do mundo; é concebível um criador do mundo que não seja mau nem bom; é concebível um criador do mundo que não seja omnipotente. Cumpre, em suma, distinguir a ideia geral de Deus da ideia particular de Deus na Igreja Católica ou qualquer outra Igreja. Sem fazer esta distinção, não estaremos examinando o problema, mas outro problema.

Por isso o que há de fundamental em raciocínio é definir os termos que se vão empregar, ou os que se vão analisar. Muitas discussões resultam frustes e inúteis porque, girando em torno de certo termo, cada contendor dá a esse termo um sentido diferente; de modo que, julgando que estão discutindo a mesma coisa, estão, ao contrário, discutindo coisas diferentes. Já tem sucedido, por este erro, estarem discordando contendores que estão de acordo, e que o verificariam logo se começassem por definir, limitar, compreender o que é que, em suma, estão discutindo.

(Textos Filosóficos . Vol. II. Fernando Pessoa)
[Imagem: Ben Goossens]

domingo, 23 de maio de 2010

Entender...

"Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo."

(Clarice Lispector)

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Não me peçam razões...




















Não me peçam razões, que não as tenho,
Ou darei quantas queiram: bem sabemos
Que razões são palavras, todas nascem
Da mansa hipocrisia que aprendemos.

Nâo me peçam razões por que se entenda
A força da maré que me enche o peito,
Este estar mal no mundo e nesta lei;
Não fiz a lei e o mundo não aceito.

Não me peçam razões, ou que as desculpe,
Deste modo de amar e destruir;
Quando a noite é de mais é que amanhece
A cor de primavera que há-de vir.

(José Saramago)

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Obstáculo intransponível

O que entende a mosca da vidraça contra a qual ela se lança até não mais poder? Nada na natureza oferece obstáculo semelhante a seu instinto natural: um obstáculo transparente. Nós também não sabemos do vazio transparente que nos separa dos outros mais do que a mosca do intransponível obstáculo daquela superfície de vidro...


(JEAN BAUDRILLARD)

domingo, 16 de maio de 2010

Felicidade...

"A felicidade é como a pluma
Que o vento vai levando pelo ar,
Voa tão leve, mas tem a vida breve,
Precisa que haja vento sem parar..."


(Vinicius de Moraes)

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Caminhamos...

Caminhamos ao encontro do amor e do desejo. Não buscamos lições, nem a amarga filosofia que se exige da grandeza. Além do sol, dos beijos e dos perfumes selvagens, tudo o mais nos parece fútil. Quando a mim, não procuro estar sozinho nesse lugar. Muitas vezes estive aqui com aqueles que amava, e discernia em seus traços o claro sorriso que neles tomava a face do amor. Deixo a outros a ordem e a medida. Domina-me por completo a grande libertinagem da natureza e do mar.
 
(Albert Camus)

terça-feira, 11 de maio de 2010

Viver

Ninguém avança pela vida em linha reta. Por vezes, saímos dos trilhos. Por vezes, perdemo-nos, ou levantamos voo e desaparecemos como pó. As viagens mais incríveis fazem-se às vezes sem se sair do mesmo lugar. No espaço de alguns minutos, certos indivíduos vivem aquilo que um mortal comum levaria toda a sua vida a viver. Alguns gastam um sem número de vidas no decurso da sua estadia cá em baixo. Alguns crescem como cogumelos, enquanto outros ficam inelutávelmente para trás, atolados no caminho. Aquilo que, momento a momento, se passa na vida de um homem é para sempre insondável. É absolutamente impossível que alguém conte a história toda, por muito limitado que seja o fragmento da nossa vida que decidamos tratar.

(Henry Miller)
[Imagem: Van Gogh]

domingo, 9 de maio de 2010

O "Bem"

O individuo quer para si o prazer ou quer afastar o desprazer: a questão é sempre, em qualquer sentido, a autoconservação. Sócrates e Platão estão certos: o que quer que o homem faça, ele sempre faz o bem, isto é: o que lhe parece bom (útil) segundo o grau de seu intelecto, segundo a eventual medida de sua racionalidade. A maldade não tem por objetivo o sofrimento do outro em si, mas nosso próprio prazer. Assim também, a compaixão não tem por objetivo o prazer do outro. Sem prazer não há vida; a luta pelo prazer é a luta pela vida. Se o individuo trava essa luta de maneira que o chamem de "bom" ou de maneira que o chamem de "mau", é algo determinado pela medida e a natureza de seu intelecto.

(Friedrich Nietzsche)

sábado, 8 de maio de 2010

Agora

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste :
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
Não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
– não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno e asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
– mais nada. 

(Cecília Meireles)

sexta-feira, 7 de maio de 2010

O Amor

Amor é tão mais fatal do que eu havia pensado, o amor é tão mais inerente quanto a própria carência, e nós somos garantidos por uma necessidade que se renovará continuamente. O amor já está, está sempre. Falta apenas o golpe da graça - que se chama paixão.

- Clarice Lispector - 
 
[Imagen: Jonh Lavery]

terça-feira, 4 de maio de 2010

A "má consciência"

Pedro Américo "Hamlet"
Aquele mundo interior originariamente fino, estendido entre duas peles, desenvolveu-se e ampliou-se à medida que a exteriorirização do homem encontrava obstáculos. As formidáveis barreiras que a organização social construia para se defender contra os antigos instintos de liberdade, e, em primeiro lugar, a barreira do castigo, conseguiram que todos os instintos do homem selvagem, livre e vagabundo, se voltassem contra o homem interior. (...) 

Então veio ao mundo a maior e mais perigosa de todas as doenças, o homem doente de si mesmo; foi consequência de um divórcio violento com o passado animal, de um salto para novas situações, para novas condições de existência, de uma declaração de guerra contra os antigos instintos que antes constituiam a sua força de vontade e o seu temível caráter. (...)

E na verdade faltavam espectadores divinos para saborear o drama, que então começou, e cujo fim não pode ainda prever-se, drama demasiado delicado, demasiado maravilhoso e antinômico para que careça de significação no planeta. Desde então o homem veio a ser um dos golpes mais felizes inesperados e excitantes da "criança grande" de Heráclito, que tem por nome Zeus ou Amor, e despertarem seu favor interesse, ansiosa expectação, esperanças e quase certezas, como se anunciasse e se preparasse alguma coisa, como se o homem não fosse um fim, mas apenas um caminho e uma ponte, um incidente, uma translação e uma promessa...

(Friedrich Nietzsche - A Genealogia da Moral)

domingo, 2 de maio de 2010

Prêmio Dardos

Em mais uma prova da gentileza e do grau de companheirismo e respeito que existe entre aqueles que se propõem a dividir seus sentimentos e impressões a respeito do mundo, através de blogs. Minha querida amiga, Tânia Marques, ofertou-me o selo de qualidade do Prêmio Dardos. Muitíssimo obrigado a ela. Acompanhem os blogs dela, vale a pena:


Que é Prêmio Dardos?

O Prêmio Dardos é um reconhecimento dos valores que cada blogueiro emprega ao transmitir valores culturais, éticos, literários, pessoais, etc. que, em suma, demonstram sua criatividade através do pensamento vivo, que está e permanece intacto entre suas letras, entre suas palavras. Esses selos foram criados com a intenção de promover a confraternização entre os blogueiros, uma forma de demonstrar carinho e reconhecimento por um trabalho que agregue valor à Web.

Aqui vão as regras:

- Exibir a imagem do selo no blog.
- Exibir o link do blog que você recebeu a indicação.
- Escolher 10, 15 ou 30 blogs para dar indicação, e avisá-los.

Segue a lista dos meus indicados, todos blogs excelentes a respeito principalmente de cultura:




sábado, 1 de maio de 2010

Ciência e Arte

Há um fio que percorre continuamente todas as culturas humanas que conhecemos e que é feito de dois cordões. Esse fio é o da ciência e da arte. Este emparelhamento indissolúvel exprime, por certo, uma unidade essencial da mente humana evoluída. Não pode ser um acidente o fato de haver culturas que se dediquem à ciência e não tenham arte e culturas que se dediquem à arte e não tenham ciência. E não há, certamente, nenhuma cultura desprovida de ambas. Deve haver alguma coisa profundamente enterrada no espírito humano - mais precisamente na imaginação humana - que se exprime naturalmente em qualquer cultura social tanto na ciência quanto na arte.

(JACOB BRONOSWSK)
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