"A literatura tem essa magia de nos tornar contemporâneos de quem quisermos." (Inês Pedrosa)

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Um pássaro azul

há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado duro para ele,
e digo, fica aí dentro,
não vou deixar
ninguém ver-te.
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu despejo whisky para cima dele
e inalo fumo de cigarros
e as putas e os empregados de bar
e os funcionários da mercearia
nunca saberão
que ele se encontra
lá dentro.
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado duro para ele,
e digo, fica escondido,
queres arruinar-me?
queres foder-me o
meu trabalho?
queres arruinar
as minhas vendas de livros
na Europa?
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado esperto,
só o deixo sair à noite
por vezes
quando todos estão a dormir.
digo-lhe, eu sei que estás aí,
por isso
não estejas triste.
depois,
coloco-o de volta,
mas ele canta um pouco lá dentro,
não o deixei morrer de todo
e dormimos juntos
assim
com o nosso
pacto secreto
e é bom o suficiente
para fazer um homem chorar,
mas eu não choro,
e tu?


(Charles Bukowski)

segunda-feira, 27 de junho de 2011

O Livro nosso de cada dia

Vladimir Kush
Algumas pessoas são como os bons livros, as vezes, no começo, é estranho, é difícil entender, é cansativo continuar, mas uma vez que fizemos isso, nos habituamos e passamos a compreender cada vez mais este novo mundo, ele passa a fazer parte de nós e nós dele e a ânsia de terminá-lo se mistura com a angústia de que esse mundo possa acabar, mas de fato, ele nunca acaba e nossa paciência das primeiras páginas, é recompensada com no qual podemos co-escrever algumas páginas.

- Alan Teixeira)

domingo, 26 de junho de 2011

O homem e o absurdo

Edvard Munch
Na história não faltam religiões nem profetas, mesmo sem deuses. Pedem-lhe para saltar. Tudo o que ele pode responder é que não entende bem, que isso não é coisa evidente. Só quer fazer, justamente, aquilo que entende bem. Afirmam que aquilo é pecado de orgulho, mas ele não entende a noção de pecado; talvez o inferno esteja ao final, mas ele não tem imaginação suficiente para vislumbrar esse estranho futuro; talvez perca a vida imortal, mas isso lhe parece fútil. Querem que reconheça sua culpa. Ele se sente inocente. Na verdade, só sente isto, sua inocência irreparável. É ela que lhe permite tudo. Assim, o que ele exige de si mesmo é viver somente com o que sabe, arranjar-se com o que é e não admitir nada que não seja certo. Respondem-lhe que nada é certo. Mas isto, pelo menos, é uma certeza. É com ela que tem que lidar: quer saber se é possível viver sem apelação.

- Albert Camus 
O Mito de Sísifo

sábado, 25 de junho de 2011

Revolte-se

Não se acostume com o que não o faz feliz, revolte-se quando julgar necessário.
Alague seu coração de esperanças, mas não deixe que ele se afogue nelas.
Se achar que precisa voltar, volte!
Se perceber que precisa seguir, siga!
Se estiver tudo errado, comece novamente.
Se estiver tudo certo, continue.
Se sentir saudades, mate-a.
Se perder um amor, não se perca!
Se o achar, segure-o!

(Fernando Pessoa)

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Amar e Despedir-me

"Nós, os perecíveis, tocamos metais,
vento, margens do oceano, pedras,
sabendo que continuarão, imóveis ou ardentes,
e eu fui descobrindo, nomeando todas as coisas:
foi meu destino amar e despedir-me."

(Pablo Neruda)

terça-feira, 21 de junho de 2011

Permita-me sonhar

Leonid Afremov


Senhor, ajudai-nos a construir a nossa casa
com janelas de aurora e árvores no quintal.
Árvores que na primavera fiquem cobertas de flores
e ao crepúsculo fiquem cinzentas como a roupa dos pescadores.

O que desejo é apenas uma casa.
Em verdade, Não é necessário que seja azul,
nem que tenha cortinas de rendas.
Em verdade, nem é necessário que tenha cortinas.
Quero apenas uma casa em uma rua sem nome.

Sem nome, porém honrada, Senhor.
Só não dispenso a árvore,
Porque é a mais bela coisa que
nos destes e a menos amarga.
Quero de minha janela sentir
os ventos pelos caminhos, e ver o sol
Dourando os cabelos negros
e os olhos de minha amada.

Também a minha amada não dispenso, meu Senhor.
Em verdade ele é a parte mais importante deste poema.
Em verdade vos digo, e bastante constrangido,
Que sem ela a casa também eu não queria,
e voltava pra pensão.

Ao menos, na pensão, eu tenho meus amigos
E a dona é sempre uma senhora
do interior que tem uma filha alegre.
Eu adoro menina alegre,
e daí podeis muito bem deduzir
Que para elas eu corro nas minhas horas de aflição.

Nas minhas solidões de amor e
nas minhas solidões do pecado
Sempre fujo para elas, quando não fujo delas, de noite,
E vou procurar prostitutas. Oh, Senhor vós bem sabeis
Como amarga a vida de um
homem o carinho das prostitutas!

Vós sabeis como tudo amarga
naquelas vestes amassadas
Por tantas mãos truculentas ou tímidas ou cabeludas
Vós bem sabeis tudo isso, e portanto permiti
Que eu continue sonhando com a minha casinha azul.

Permiti que eu sonhe com
a minha amada também, porque:
- De que me vale ter casa sem ter
mulher amada dentro?
Permiti que eu sonhe com uma que ame
andar sobre os montes descalça
E quando me vier beijar faça-o
como se vê nos cinemas...


O ideal seria uma que amasse fazer comparações
de nuvens com vestidos, e peixes com avião;
Que gostasse de passarinho pequeno,
gostasse de escorregar no corrimão da escada
E na sombra das tardes viesse pousar
Como a brisa nas varandas abertas...

O ideal seria uma menina boba:
que gostasse de ver folha cair de tarde...
Que só pensasse coisas leves que nem existem na terra,
E ficasse assustada quando ao cair da noite
Um homem lhe dissesse palavras misteriosas ...
O ideal seria uma criança sem dono,
que aparecesse como nuvem,
Que não tivesse destino nem nome -
senão que um sorriso triste
E que nesse sorriso estivessem encerrados
Toda a timidez e todo o espanto
das crianças que não têm rumo...

(Manoel de Barros)

segunda-feira, 20 de junho de 2011

O Fim Antecipado


O suicídio não só constitui um pecado, ele é o pecado. E o mal extremo e absoluto; a recusa de interessar-se pela existência; a recusa de fazer um juramento de lealdade à vida. O homem que mata um homem, mata um homem. O homem que se mata, mata todos os homens; no que lhe diz respeito, ele elimina o mundo. Seu ato é pior (considerado simbolicamente) do que qualquer estupro ou atentado a bomba, pois destrói todos os prédios; insulta a todas as mulheres. O ladrão se satisfaz com diamantes; mas o suicida não: esse é seu crime. Ele não pode ser subornado, nem com as cintilantes pedras da Cidade Celestial. O ladrão elogia os objetos que furta, quando não elogia o dono deles. Mas o suicida insulta a todos os objetos da terra ao não furtá-los. Ele conspurca cada flor ao recusar-se a viver por ela.


(G. K Chesterton)

sábado, 18 de junho de 2011

Escute o que tenho a dizer

Edvard Munch

"O que as pessoas mais desejam é alguém que as escute de maneira calma e tranquila. Em silêncio. Sem dar conselhos. Sem que digam: "Se eu fosse você". A gente ama não é a pessoa que fala bonito. É a pessoa que escuta bonito. A fala só é bonita quando ela nasce de uma longa e silenciosa escuta. É na escuta que o amor começa. E é na não-escuta que ele termina. Não aprendi isso nos livros. Aprendi prestando atenção."

(Rubem Alves)

sexta-feira, 17 de junho de 2011

A Loucura do Povo

Eis a razão por que Platão declarava que os sábios se devem afastar dos negócios públicos. E exemplifica: Quando os sábios vêem um enxame de gente nas ruas, que todos os dias se deixam encharcar até os ossos debaixo de um aguaceiro, e não conseguem convencê-los a sair da chuva e a abrigar-se em casa, sabendo que, se eles mesmos viessem para a rua, em vez de os persuadirem se limitariam também a se molhar, contentam-se com ficar abrigados em suas casas, na convicção de que não lhes é possível curar a loucura do povo!

(Thomas More, "A Utopia")

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Uma mina inesgotável


Nós temos sempre necessidade de pertencer à alguma coisa; e a liberdade plena seria a de não pertencer a coisa nenhuma. Mas como é que se pode não pertencer à língua que se aprendeu, à língua com que se comunica, e neste caso, a língua com que se escreve?

Se o leitor, o leitor de livros; aquele que gosta de ler, não se imitar à quilo que se faz agora, se ele andar pra traz e começar do principio, e poder ler os primitivos e os grandes cronistas e depois os grandes poetas, a língua passa a ser algo mais que um mero instrumento de comunicação, transformando-se numa mina inesgotável de beleza e valor.

(José Saramago)

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Quanto mais objetos de interesse...


Toda a desilusão é para mim uma doença que certas circunstâncias podem tornar inevitável, é verdade, mas que, quando se produz, nem por isso deve deixar de ser tratada o mais rapidamente possível, em vez de ser olhada como uma forma superior de sabedoria. Um homem, suponhamos, gosta de morangos e um outro não gosta; em que é que o último é superior ao primeiro? Não há nenhuma prova impessoal e abstracta de que os morangos sejam bons ou maus. Para quem gosta são bons, para quem não gosta são maus. Mas o homem que gosta tem um prazer que o outro não conhece; sobre este ponto, a sua vida é mais agradável e está melhor adaptado ao mundo onde ambos têm de viver. 

O que é verdadeiro neste exemplo trivial é igualmente verdade nas questões mais importantes. O homem que gosta de assistir a desafios de futebol é sob esse aspecto supeior ao homem que não gosta. O que aprecia a leitura é ainda mais superior do que aquele que não a aprecia, pois as oportunidade de ler são mais frequentes do que as de ver desafios de futebol. Quanto mais objectos de interesse um homem tem, mais ocasiões tem também de ser feliz e menos está á mercê do destino, pois se perder um pode recorrer a outro. A vida é demasiado curta para nos permitir interessar-nos por todas as coisas, mas é bom que nos interessemos por tantas quantas forem necessárias para preencher os nossos dias. Somos todos propensos à doença do introvertido que, perante o multiforme espectáculo que o mundo lhe oferece, desvia a vista para contemplar somente o vazio dentro de si. 



(Bertrand Russell, in 'A Conquista da Felicidade' )

domingo, 12 de junho de 2011

Se eu te pudesse dizer

















Se eu te pudesse dizer
O que nunca te direi,
Tu terias que entender
Aquilo que nem eu sei.

Seu eu te pudesse dizer
o quanto te amo
Te daria grande prazer
e viverias nesse encanto.

Mas amar é meu segredo
O que nunca te direi
Pois sinto muito medo
E sei que te perderei.

Se soubesse compreender
O tamanho desse amor
Tu terias que entender
Que so quero seu calor.

Assim sigo meu caminhar
Te amando sem lei
E sempre a me perguntar
Aquilo que nem eu sei.



(Fernando Pessoa)

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Poesia é coisa séria!


"Entendo que poesia é negócio de grande responsabilidade, e não considero honesto rotular-se de poeta quem apenas verseje por dor de cotovelo, falta de dinheiro, ou momentânea tomada de contato com as forças líricas do mundo, sem se entregar aos trabalhos cotidianos e secretos da técnica, da leitura, da contemplação e mesmo da ação. Até os poetas se armam, e um poeta desarmado é, mesmo, um ser à mercê de inspirações fáceis, dócil às modas e compromissos."

(Carlos Drummond de Andrade)

quarta-feira, 8 de junho de 2011

É urgente o amor

É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos,
as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros
e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.

(Eugenio de Andrade)

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Dividir minha tristeza?

Eu divido minhas alegrias, meus livros e discos, minha cama, meu conhecimento e até meu uísque... mas não admito que me chamem de egoísta só porque não divido minhas tristezas, porque elas são somente minhas e por serem minhas não admito que alguém as compreenda. Sou humano e deixar se compreender é ser menos que humano, porque humano não se compreende. Prefiro ser ignorado humanamente, como se ignora formigas que trafegam sem querer para longe do formigueiro, como se ignora a mecânica dos automóveis e a aerodinâmica dos aviões, a falsidade dos filmes de guerra, a dor que o poeta deveres sente, a pedra no meio do caminho, a palmeira onde o sabiá cantava e a inexistência desconsolável de qualquer Pasárgada, sem a vida, no entanto, deixar de ser menos vida.

- Alan Teixeira

sábado, 4 de junho de 2011

O Estrangeiro

Ben Gossens
Mesmo no banco dos réus, é sempre interessante ouvir falar de si mesmo. Durante as falas do promotor e do meu advogado, posso dizer que se falou muito de mim, e talvez até mais de mim do que do meu crime. (...) Apesar das minhas preocupações, às vezes eu ficava tentando intervir e meu advogado me dizia, então, "cale-se, é melhor para seu caso". De algum modo, pareciam tratar deste caso à margem de mim. Tudo se desenrolava sem a minha intervenção. Acertavam o meu destino, sem me pedir uma opinião. De vez em quando, tinha vontade de interromper todo mundo e dizer: "Mas afinal quem é o acusado? É importante ser o acusado. E tenho algo a dizer." Mas pensando bem, nada tinha a dizer. Devo reconhecer, aliás, que o interesse que se tem em ocupar as pessoas não dura muito tempo.

- Albert Camus
O Estrangeiro



quarta-feira, 1 de junho de 2011

A Revolução dos Bichos

Francisco Goya (Espanha, 1746-1828)

Andaram pé ante pé, até a casa, e os mais altos espiaram através da janela da sala de estar. Lá dentro, em volta de uma mesa grande, estavam sentados meia dúzia de granjeiros e meia dúzia de porcos dentre os mais eminentes, Napoleão, no lugar de honra, na cabeceira.

O Sr. Pilkington, da Granja Foxwood, levantara-se com o copo na mão. Disse que ia convidar os presentes para um brinde. Mas antes desejava dizer algumas palavras, que julgava ser seu dever pronunciar.
Era motivo de grande satisfação para ele - e tinha certeza de que falava por todos os demais - sentir que o longo período de desconfianças e desentendimentos chegara ao fim. (...)

Napoleão, que permanecera de pé, disse que iriam também proferir algumas palavras. Também ele, disse, alegrava-se de que o período de desentendimentos tivesse chegado ao fim.(...)


... e os animais afastaram-se em silêncio. Não haviam, porém, chegado sequer  a vinte metros quando se detiveram ante o vozerio alto que vinha lá de dentro. Voltaram correndo e tornaram a espiar pela janela. De fato, era uma discussão violenta. Gritos, socos na mesa, olhares irados, furiosas negativas. A origem da briga, aparentemente, fora o fato de Napoleão e o Sr. Pilkington terem, ao mesmo tempo, apresentado um ás de espadas.

Doze vozes gritavam, cheias de ódio, e eram todas iguais. (...) As criaturas que estavam de fora olhavam de um porco para um homem, de um homem para o porco e de um porco para um homem outra vez; mas já era impossível distinguir quem era homem e quem era porco. 

(George Orwell, A Revolução dos Bichos)
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