"A literatura tem essa magia de nos tornar contemporâneos de quem quisermos." (Inês Pedrosa)

quarta-feira, 28 de abril de 2010

O Sábio

O sábio, que renunciou ao sentido e ao eu, ama o real, aceita-o e contenta-se com ele. Libertado de si, curado do medo e da esperança, despreocupado com os signos e o sentido, só habita o tempo na paz aqui, agora e sempre, da presença. Não aguarda nada, mas é atento. Não busca nada, mas é disponível. Não espera nada, mas ama. Todos os sábios disseram, em todas as línguas: "Infinite love, infinite patience". Sabedoria, não de recolhimento, mas de acolhida. O sábio tem o tempo (já que não aguarda nada) e todo o tempo (já que não há outro). Paciência, não da espera, mas da vida, não para o futuro, mas para o presente. Os ocupados se precipitam para o que lhes falta, ou aguardam (pacientemente, dizem eles!) que lhes caia dos céus. O sábio faz, tranqüilamente, o que tem a fazer. Não aguarda nada, e é por isso que não tem impaciência. Nada lhe falta, e é por isso que não se precipita. Lentidão do tempo, lentidão da presença...Todos os dias são hoje, é "o oitavo dia da semana, que não começa e não se esgota em nenhum tempo", e essa presença é exatamente aquilo a que o sábio está presente. Ele ainda vive no tempo? Claro, mas na verdade do tempo. Presente ao presente da presença, ele é aqui e agora, contemporâneo do eterno.

(André Comté-Sponvill)

sábado, 24 de abril de 2010

A Existência é uma Comédia

Se alguém se aproximasse de um cômico mascarado, no instante em que estivesse desempenhando o seu papel, e tentasse arrancar-lhe a máscara para que os espectadores lhe vissem o rosto, não perturbaria assim toda a cena? Não mereceria ser expulso a pedradas, como um estúpido e petulante? No entanto, os cômicos mascarados tornariam a aparecer; ver-se-ia que a mulher era um homem, a criança um velho, o rei um infeliz e Deus um sujeito à-toa. Querer, porém, acabar com essa ilusão importaria em perturbar inteiramente a cena, pois os olhos dos espectadores se divertiam justamente com a troca das roupas e das fisionomias. Vamos à aplicação: que é, afinal, a vida humana? Uma comédia. Cada qual aparece diferente de si mesmo; cada qual representa o seu papel sempre mascarado, pelo menos enquanto o chefe dos comediantes não o faz descer do palco. O mesmo ator aparece sob várias figuras, e o que estava sentado no trono, soberbamente vestido, surge, em seguida, disfarçado em escravo, coberto por miseráveis andrajos. Para dizer a verdade, tudo neste mundo não passa de uma sombra e de uma aparência, mas o fato é que esta grande e longa comédia não pode ser representada de outra forma.

(Erasmo de Roterdam - Elogio da Loucura)

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Muito não é demais...


Dizem que a gente tem o que precisa. Não o que a gente quer. Tudo bem! Eu não preciso de muito. Eu não quero muito.Eu quero mais, mais paz, mais saúde, mais dinheiro,mais poesia, mais verdade, mais harmonia, mais noites bem dormidas, mais noites em claro, mais eu,mais você, mais sorrisos, beijos e aquela rima grudada na boca. Eu quero nós, mais nós, Grudados, Enrolados. Amarrados, Jogados no tapete da sala. Nós que não atam nem desatam. Eu quero pouco e quero mais,quero você, Quero eu, Quero domingos de manhã, Quero cama desarrumada, lençol, café e travesseiro, Quero seu beijo, Quero seu cheiro. Quero aquele olhar que não cansa, o desejo que escorre pela boca e o minuto no segundo seguinte: Nada é muito quando é demais.

- Caio Fernando Abreu -
[Pintura: Fátima Seehagen]

sábado, 17 de abril de 2010

Inumanidade

“Hoje sinto orgulho que dizer que sou inumano, que não pertenço a homens e governos, que nada tenho a ver com a maquinaria rangente da humanidade – eu pertenço à terra! (…)“Lado a lado com a espécie humana corre outra raça de seres, os inumanos, a raça de artistas que, incitados por desconhecidos impulsos, tomam a massa sem vida da humanidade e, pela febre e pelo fermento com que a impregnam, transformam a massa úmida em pão, e pão em vinho, e o vinho em canção. Do composto morto e da escória inerte criam uma canção que contagia. Vejo esta outra raça de indivíduos esquadrinhando o universo, virando tudo de cabeça pra baixo, e os pés sempre se movendo em sangue e lágrima, as mãos sempre vazias, sempre se estendendo na tentativa de agarrar o além, o deus inatingível: matando tudo ao seu alcance a fim de acalmar o monstro que lhe corrói as entranhas. (…) E tudo quanto fique aquém desse aterrorizador espetáculo, tudo quanto seja menos sobressaltante, menos terrificante, menos louco, menos delirante, menos contagiante, não é arte. Esse resto é falsificação. Esse resto é humano. Pertence a vida e à ausência de vida.“(…) Se sou inumano é porque meu mundo transbordou de suas fronteiras humanas, porque ser humano parece uma coisa pobre, triste, miseravel, limitada pelos sentidos, restringidas pelas moralidades e pelos códigos, definida pelos lugares-comuns e ismos.“(…) Tenhamos um mundo de homens e mulheres com dínamos entre as pernas, um mundo de fúria natural, de paixão, ação, drama, sonhos, loucuras, um mundo que produza êxtase e não peidos secos.“(…) Que os mortos comam os mortos. Dancemos nós os vivos, à beira da cratera, uma última e agonizante dança. Mas que seja uma dança!” - 

(Henry Miller em Trópico de Câncer)

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Incompreensão recíproca

Incompreensão recíproca - Alguns podem até me entenderem, apenas alguns, mas não acredito que alguém possa me compreender. Para isso ser possível deveria supor que esse alguém pensasse e sentisse como eu e que me conheceste. Mas qual eu? O filósofo ou poeta? O adulto ou criança? O objetivo e racional ou o sensível e apaixanado? O sonhador e idealista ou o realista? Não há ninguém que conheça a todos, nem mesmo eu posso tal façanha. Em meio a esse turbilhão de sentimentos que a existência, esse absurdo existir, proporciona, que pode um homem sensível e profundo fazer, senão conformar-se com toda incompreensão? Acaso não seria insensato exigir compreensão alheia, quando nem mesmo a si próprio como um todo é possível conhecer?

- Alan Teixeira

quarta-feira, 14 de abril de 2010

A porta da Verdade

















A porta da verdade estava aberta,
Mas só deixava passar
Meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
Porque a meia pessoa que entrava
Só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
Voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
Onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
Diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
Seu capricho, sua ilusão, sua miopia. 

(C. Drummond)

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Liberdade

Agora ar é ar e coisa é coisa: traço nenhum da terra celestial seduz nossos olhos sem ênfase onde luz a verdade magnífica do espaço. Montanhas são montanhas; céus são céus - e uma tal liberdade nos aquece que é como se o universo uno, sem véus, total, de nós (somente nós) viesse - sim; como se, despertas do torpor do verão, nossas almas mergulhassem no branco sono onde se irá depor toda a curiosidade deste mundo (com júbilo de amor) imortal e a coragem de receber do tempo o sonho mais profundo.

Edward E. Cummings

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Homem e Cultura

As diferenças existentes entre os homens, portanto, não podem ser explicadas em termos das limitações que lhes são impostas pelo seu aparato biológico ou pelo seu meio ambiente. A grande qualidade da espécie humana foi a de romper com suas próprias limitações: um animal frágil, provido de insignificante força física, dominou toda a natureza e se transformou no mais temível de todos os predadores. Sem asas, dominou os ares; sem guelras ou membranas próprias, conquistou os mares. Tudo isto porque difere dos outros animais por ser o único que possui cultura.

(Roque Laraia)

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Inteligencia x Ignorancia

Voltaire preferia a monarquia à democracia; na primeira basta educar um homem, na segunda há necessidade de educar milhões - e o coveiro leva-os a todos antes que dez por cento concluam o curso. A minoria que consegue educar-se reduz o tamanho da família; a maioria sem tempo para se educar procria com abundância; quase todos os componentes das novas gerações provêm de famílias cujas rendas não permitiram a educação da prole. Daí a perpétua futilidade do liberalismo político; a propagação da inteligência não está em compasso com a propagação dos ignorantes.

(Will Durant - livro: 'Filosofia da Vida)

domingo, 4 de abril de 2010

Poema da Gare de Astapovo
















O velho Leon Tolstoi fugiu de casa aos oitenta anos

E foi morrer na gare de Astapovo!
Com certeza sentou-se a um velho banco,
Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso
Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo
Contra uma parede nua...
Sentou-se ...e sorriu amargamente
Pensando que
Em toda a sua vida
Apenas restava de seu a Gloria,
Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas
Coloridas
Nas mãos esclerosadas de um caduco!
E entao a Morte,
Ao vê-lo tao sozinho aquela hora
Na estação deserta,
Julgou que ele estivesse ali a sua espera,
Quando apenas sentara para descansar um pouco!
A morte chegou na sua antiga locomotiva
(Ela sempre chega pontualmente na hora incerta...)
Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho,
E quem sabe se até não morreu feliz: ele fugiu...
Ele fugiu de casa...
Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade...
Não são todos que realizam os velhos sonhos da infância!

[Mário Quintana]

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Essa tal Verdade

Durante algum tempo de nossas vidas, acreditamos que existe a "verdade". Incansáveis e ávidos a buscamos, porém mais cedo ou mais tarde, descobrimos que ela é inalcançável. As respostas que buscamos não encontramos, a não ser uma peça ou outra de infinito quebra cabeças, que com mais vontade de verdade nos deixa, alimentando a ilusão dessa interminável viagem. Mas que importa se não é alcançável essa tal verdade, o que me importa é a viagem, se ao meu lado estiver a tal felicidade. Ah! Como é bom não encontrá-la e continuar sempre a desejá-la!!!

- Alan Teixeira

O silêncio

Assim como do fundo da música brota uma nota que enquanto vibra cresce e se adelgaça até que noutra música emudece, brota do fundo do silêncio outro silêncio, aguda torre, espada, e sobe e cresce e nos suspende e enquanto sobe caem recordações, esperanças, as pequenas mentiras e as grandes, e queremos gritar e na garganta o grito se desvanece: desembocamos no silêncio onde os silêncios se emudecem.

(Octavio Paz)

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Da mesma fonte

Diariamente sufocamos nossos melhores impulsos. É por isso que nos dá uma dor no coração sempre que lemos aquelas linhas escritas pela mão de um mestre e as reconhecemos como nossas, como os tenros brotos que esmagamos porque nos faltava fé para acreditar em nossas próprias forças, nosso próprio critério de verdade e beleza. Todo homem, quando se aquieta, quando se torna desesperadamente honesto consigo mesmo, é capaz de pronunciar verdades profundas. Derivamos todos da mesma fonte. Não há mistério sobre a origem das coisas. Somos todos parte da criação, todos reais, todos poetas, todos músicos; só nos falta desabrochar, apenas descobrir o que já existe em nós.

(HENRY MILLER)
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