"A literatura tem essa magia de nos tornar contemporâneos de quem quisermos." (Inês Pedrosa)

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

O Sensível

Leonid Afremov
Quem parte, de manhã bem cedo, para a caça, de barriga vazia e as narinas frementes à menor mudança do vento, quem escuta, inquieto, a ressaca bater na popa do barco, alertando os primeiros odores das folhas por entre o muro espesso dos perfumes das algas e do sal, quem aguça sua vida e seus ouvidos a distância? Quem hoje, não tem necessidade de cartaz ou de mensagem para se permitir ouvir, olhar, sentir, saborear? Órgãos arruinados, empirismo em ruína; impressões perdidas, fantasmas. Desde que falamos, perdemos os sentidos. O que não desperta os sentidos, droga-os. Toma cuidado com o torpor da língua e de filosofia; foge das culturas de proibição. A sabedoria emana do corpo: o mundo dá a sapiência, e os sentidos a recebem, respeita o dado gratuito, acolhe o dom. O mundo belo, oferece gratuitamente o sensível.

(Michel Serres)

sábado, 27 de novembro de 2010

Otimismo Radical

Van Gogh "Os comedores de batata"

Hoje julgamos todas as coisas a partir de um encadeamento real e racional. Mas com a mesma força e razão poderíamos referi-las a um encadeamento irracional - basta inverter a perspectiva de uma transcendência providencial para uma transcendência maléfica. Ficaríamos menos desesperados se pensássemos que cada desgraça estaria justificada com relação a uma ordem do mal. Tal é a regra do otimismo radical. É preciso fazer do mal a regra do jogo. É então que a exceção passa a ser a da felicidade. É a alegria que se torna fatal. Confere ao bem e à felicidade um prestígio novo: o de uma miraculosa exceção.

(Jean Baudrillard)

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Autonomia

John Singer Sargent

Se eu deixar de interferir nas pessoas,
elas se encarregarão de si mesmas,
Se eu deixar comandar às pessoas,
elas se comportam por si mesmas,
Se eu deixar de pregar às pessoas, 
elas se aperfeiçoam por si mesmas,
Se eu deixar de me impor às pessoas
elas se tornam elas mesmas.

(Fadiman e Frager)

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Que é viajar?

"Noite Estrelada" Van Gogh

Que é viajar, e para que serve viajar? Qualquer poente é o poente... porque se a libertação não está em mim, não está, para mim, em parte alguma. Nunca desembarcamos de nós. " Por mais alto que subamos e mais baixo que desçamos, nunca saímos das nossas sensações", segundo Condillac. As verdadeiras paisagens são as que nós mesmos criamos, porque assim, sendo deuses delas, as vemos como elas verdadeiramente são, que é como foram criadas. Quem cruzou todos os mares, cruzou somente a monotonia de si mesmo. Já cruzei mais mares do que todos. Passei já por cidades mais que as existentes, e os grandes rios de nenhuns mundos fluíram, absolutos, sob os meus olhos contemplativos. Se viajasse, encontraria a cópia débil do que já vira sem viajar. 


(Fernando Pessoa)

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Solidão

Edward Hopper

Se ao menos eu pudesse lhe dar uma idéia dos meus sentimentos de solidão! Não existe ninguém a quem eu me sinta próximo, tanto entre os vivos quanto entre os mortos. Isto é inimaginavelmente apavorante. Apenas o constante exercício de aprender como tolerar este sentimento, e o desenvolvimento passo-a-passo, desde a infância, da minha capacidade de tolerá-lo – permitem-me compreender como eu ainda não pereci em razão disto. De resto, a tarefa pela qual vivo me desafia claramente: é a realidade de uma tristeza inimaginável, ainda que transformada pela consciência de que há nela grandiosidade – se é que a grandiosidade persiste por algum tempo na tarefa de um mortal. 

(Friedrich Nietzsche, Sils-Maria, 06 de Agosto de 1886. Carta a Franz Overbeck)

domingo, 21 de novembro de 2010

A verdadeira arte de viajar

Imagem domínio público

















A gente sempre deve sair à rua como quem foge de casa,
Como se estivessem abertos diante de nós todos os caminhos do mundo.
Não importa que os compromissos, as obrigações, estejam ali...
Chegamos de muito longe, de alma aberta e o coração cantando!


(Mário Quintana in “A cor do invisível”)

sábado, 20 de novembro de 2010

Um lugar...

As cidades estão cheias de gente. As casas cheias de inquilinos. Os hotéis cheios de hóspedes. Os trens cheios de viajantes. Os cafés cheios de consumidores. As praias cheias de banhistas. O que antes não era um problema, hoje começa a sê-lo: encontrar um lugar. 

(José Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas)

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Filosofia, pra que serve?


O leitor ocupado perguntará para que serve a filosofia. Pergunta vergonhosa, que não fazemos à poética, essa outra construção imaginativa de um mundo mal conhecido. Se a poesia nos revela a beleza que os nossos olhos ineducados não vêem, e se a filosofia nos dá os meios de compreender e perdoar, não lhes peçamos mais - isso vale todas as riquezas da Terra. A filosofia não enche a nossa carteira, não nos ergue às dignidades do Estado; é até bastante descuidosa destas coisas. Mas de que vale engordar a carteira, subir a altos postos e permanecer na ignorância ingénua, desapetrechado de espírito, brutal na conduta, instável no carácter, caótico nos desejos e cegamente infeliz? A maturidade é tudo. Talvez que a filosofia nos dê, se lhe formos fiéis, uma sadia unidade de alma. Somos negligentes e contraditórios no nosso pensar; talvez ela possa classificar-nos, dar-nos coerência, libertar-nos da fé e dos desejos contraditórios.  Da unidade de espírito pode vir essa unidade de carácter e propósitos que faz a personalidade e dá ordem e dignidade à vida. Filosofia é conhecimento harmónico, criador da vida harmónica; é disciplina que nos leva à serenidade e à liberdade. Saber é poder, mas só a sabedoria é liberdade. 

(Will Durant, in "Filosofia da Vida")

domingo, 14 de novembro de 2010

Escravos de si mesmos


A suposição de que a identidade de uma pessoa transcende, em grandeza e importância, tudo o que ela possa fazer ou produzir é um elemento indispensável da dignidade humana. (...) Só os vulgares consentirão em atribuir a sua dignidade ao que fizeram; em virtude dessa condescendência serão «escravos e prisioneiros» das suas próprias faculdades e descobrirão, caso lhes reste algo mais que mera vaidade estulta, que ser escravo e prisioneiro de si mesmo é tão ou mais amargo e humilhante que ser escravo de outrem. 

(Hannah Arendt, in 'A Condição Humana')

sábado, 13 de novembro de 2010

Independência do Homem

Edvard Munch
Mal podemos acreditar no filósofo a quem tudo deixa indiferente; não acreditamos na tranquilidade do estóico, não desejamos sequer a impavidez, porque a própria condição humana nos lança na paixão e no medo, e são as lágrimas e o júbilo que nos permitem conhecer o que é. Eis por que somente o impulso ascendente nos liberta das perturbações anímicas e não é pela supressão que nos encontramos. Temos, pois, que nos arriscar a ser homens e, enquanto homens, fazermos o que pudermos para alcançar a independência conquistada. Sofreremos então sem queixume, desesperar-nos-emos sem nos afundarmos, abalados mas nunca completamente derrubados quando suspensos à íntima independência que em nós se gera.  A filosofia, porém, é a escola dessa independência, não a sua posse. 


(Karl Jaspers, in 'Iniciação Filosófica')

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Coragem!

Tem coragem, irmão meu? Tem valentia? Não coragem diante de testemunhas, mas valentia de solitário e daquele ao qual nem mesmo um deus faz mais do que ser espectador. As almas frias, cegas, bêbadas, não são para mim corajosas. Tem coração aquele que conhece o medo, mas tem somente controle sobre o medo; aquele que olha para o abismo, mas com orgulho. Que olha para o abismo, mas com olhos de águia — que com garras de águia prende o abismo: isto constitui a coragem.

(Friedrich Nietzsche)

sábado, 6 de novembro de 2010

Toda percepção da verdade...

Norman Parker
" Toda percepção da verdade é o descobrimento de uma analogia. A verdade não tem inimigos. A verdade é a verdade de cada um. Um pensamento sincero é a melhor espécie de verdade. A única maneira de falar a verdade é falar com o coração. O intelecto não deveria falar nunca: não é um som natural. O homem pode apenas exprimir sua relação com a verdade, mas não a verdade em si mesma."

(Henry Thoreau)

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Justiça e liberdade


A revolução do século XX separou arbitrariamente, para fins desmesurados de conquista, duas noções inseparáveis. A liberdade absoluta mete a justiça a ridículo. A justiça absoluta nega a liberdade. Para serem fecundas, as duas noções devem descobrir os seus limites uma dentro da outra. Nenhum homem considera livre a sua condição se ela não for ao mesmo tempo justa, nem justa se não for livre. Precisamente, não pode conceber-se a liberdade sem o poder de clarificar o justo e o injusto, de reivindicar todo o ser em nome de uma parcela de ser que se recusa a extinguir-se. Finalmente, tem de haver uma justiça, embora bem diferente, para se restaurar a liberdade, único valor imperecível da história. Os homens só morrem bem quando o fizeram pela liberdade: pois, nessa altura, não acreditavam que morressem por completo. 

(Albert Camus, in "O Mito de Sísifo")
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...