"A literatura tem essa magia de nos tornar contemporâneos de quem quisermos." (Inês Pedrosa)

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Saudade do que nunca existiu...

(...) Ah, não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram! O que eu sinto quando penso no passado, que tive no tempo real, quando choro sobre o cadáver da vida da minha infância ida..., isso mesmo não atinge o fervor doloroso e trémulo com que choro sobre não serem reais as figuras humildes dos meus sonhos, as próprias figuras secundárias que me recordo de ter visto uma só vez, por acaso, na minha pseudovida, ao virar uma esquina da minha visionação, ao passar por um portão numa rua que subi e percorri por esse sonho fora.

... quando medito que os meus amigos de sonho, com quem passei tantos detalhes de uma vida suposta, com quem tantas conversas iluminadas, em cafés imaginários, tenho tido, não pertenceram, afinal, a nenhum espaço onde pudessem ser, realmente, independente da minha consciência deles!

As flores do jardim da pequena casa de campo e que nunca existiu senão em mim. As hortas, os pomares, o pinhal da quinta que foi só um meu sonho! As minhas vilegiaturas supostas, os meus passeios por um campo que nunca existiu! As árvores de à beira da estrada, os atalhos, as pedras, os camponeses que passam... tudo isto, que nunca passou de um sonho (...) uma vida real morta que fito, solene, no seu caixão.

(...) Certos quadros sem subido relevo artístico, certas oleogravuras que havia em paredes com que convivi muitas horas — passam a realidade dentro de mim. Aqui a sensação era outra, mais pungente e triste. Ardia-me não poder estar ali, quer eles fossem reais ou não. Não ser eu, ao menos, uma figura a mais, desenhada ao pé daquele bosque ao luar que havia numa pequena gravura dum quarto onde dormi já não em pequeno!

 (...) As feições da minha saudade eram outras. Os gestos do meu desespero eram diferentes. A impossibilidade que me torturava era de outra ordem de angústia. (...) Não haver, pelo menos só para mim, um paraíso feito disto! Não poder eu encontrar os amigos que sonhei, passear pelas ruas que criei, acordar, entre o ruído dos galos e das galinhas e o rumorejar matutino da casa, na casa de campo em que eu me supus...


O mal da vida, a doença de ser consciente, entra com o meu próprio corpo e perturba-me. Não haver ilhas para os inconfortáveis, alamedas vetustas, inencontráveis de outros para os isolados no sonhar! Ter de viver e, por pouco que seja, de agir; ter de roçar pelo fato de haver outra gente, real também, na vida! Ter de estar aqui escrevendo isto, por me ser preciso à alma fazê-lo, e, mesmo isto, não poder sonhá-lo apenas, exprimi-lo sem palavras, sem consciência mesmo, por uma construção de mim-próprio em música e esbatimento, de modo que me subissem as lágrimas aos olhos só de me sentir expressar-me, e eu florisse, como um rio encantado, por lentos declives de mim próprio, cada vez mais para o incoinconsciente e o Distante, sem sentido nenhum exceto Deus.

(Fernando Pessoa, in Livro do Desassossego)

4 comentários:

Evandro Oliveira disse...

Alan,

Passei apenas para dizer que o Livro do Desassossego é meu livro de cabeçeira, Bernardo Soares me emociona sempre.

Passa lá no blog, tem uma resenha novo de um filme que acho que você vai gostar.

http://sabordaletra.blogspot.com/

Alan Tykhé disse...

Esse livro vai me marcar para sempre, o encontrei ou ele me encontrou (rs), não consigo parar de ler, mas também não quero terminar... é o meu favorito entre todos.

Passo sim, pode deixar...

Abraço

William Garibaldi disse...

Alan, Pessoa é muito atual!
Eu estou me sentindo assim.. aliás a dor do que não foi e poderia ter sido me dilacerou...
abandonei todos os desejos!...

To de volta!
Abraço!

Curti tua foto no perfil...
Um homem e seu violão...
uma imagem sempre fatal!

Alan Tykhé disse...

Caro Willian, bem vindo de volta. rs

Violão, meu melhor amigo... rs

Pessoa é incrivelmente atual, aliás, até mesmo depois de muito tempo ele continua sendo um homem póstumo.

Abraço

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