"A literatura tem essa magia de nos tornar contemporâneos de quem quisermos." (Inês Pedrosa)

terça-feira, 31 de julho de 2012

As Fontes


Um dia quebrarei todas as pontes
Que ligam o meu ser, vivo e total,
À agitação do mundo do irreal,
E calma subirei até às fontes

Irei até às fontes onde mora
A plenitude, o límpido esplendor
Que me foi prometido em cada hora,
E na face incompleta do amor

Irei beber a luz e o amanhecer,
Irei beber a voz dessa promessa
Que às vezes como um vôo me atravessa,
E nela cumprirei todo o meu ser.

- Sophia de Mello Breyner

segunda-feira, 30 de julho de 2012

O Vazio da Loucura

Jacques Resch
‎A substituição do tema da morte pelo da loucura não marca uma ruptura, mas sim uma virada no interior da mesma inquietude. Trata-se ainda do vazio da existência, mas esse vazio não é mais reconhecido como termo exterior e final, simultaneamente ameaça e conclusão; ele é sentido do interior, como forma contínua e constante da existência.

- Michel Foucault,
História da Loucura

domingo, 29 de julho de 2012

Caminho Resvaloso


Todo caminho da gente é resvaloso. Mas também, cair não prejudica demais. A gente levanta, a gente sobe, a gente volta!... O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: Esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa..., Sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. Ser capaz de ficar alegre e mais alegre no meio da alegria, E ainda mais alegre no meio da tristeza... 

- João Guimarães Rosa,
Grande Sertão Veredas

sábado, 28 de julho de 2012

Tykhé

"Nunca se sabe antecipadamente como alguém vai aprender, por quais amores se torna bom em latim, por quais encontros se é filósofo, em quais dicionários se aprende a pensar."

- Gilles Deleuze

terça-feira, 24 de julho de 2012

Palavra e Ato

O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velar intenções, mas revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir, mas para criar novas realidades.

Hannah Arendt,
A Condição Humana

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Pedagogia da Autonomia

A liberdade que não faz uma coisa porque teme o castigo não está 'eticizando-se'. É preciso que eu aceite a necessidade ética, aí o limite é compromisso e não mais imposição, é assunção. O castigo não faz isso. O castigo pode criar docilidade, silêncio. Mas os silenciados não mudam o mundo. 

- Paulo Freire, 
Pedagogia dos Sonhos Possíveis

quinta-feira, 19 de julho de 2012

A Miséria da Criatura


Quando o coração é sensível e o espírito contundente, basta lançar um olhar sobre o mundo para ver a miséria da criatura e pressentir as vias da redenção; se são insensíveis e embotados, serão necessárias perturbações maciças para desencadear sensações fracas. É assim que um príncipe mimado se apercebeu pela primeira vez de um mendigo, de um doente e de um morto ― e tornou-se assim em Buda; em contrapartida, um escritor contemporâneo vive a experiência de montanhas de cadáveres e do horroroso aniquilamento de milhares de indivíduos nas conturbações do pós-guerra na Rússia ― e conclui que o mundo não está em ordem e tira daí uma série de romances muito comedidos. Um, vê no sofrimento a essência do ser e procura uma libertação no fundamento do mundo; o outro, vê-a como uma situação de infelicidade à qual se pode, e deve, remediar ativamente. Tal alma sentir-se-á mais fortemente interpelada pela imperfeição do mundo, enquanto a outra sê-lo-á pelo esplendor da criação. Um, só vive o além como verdadeiro se ele se apresentar com brilho e com grande barulho, com a violência e o pavor de um poder superior sob a forma de uma pessoa soberana e de uma organização; para o outro, o rosto e os gestos de cada homem são transparentes e deixam transparecer nele a solidão de Deus. 

- Eric Voegelin

Alienação Consumista


Jacques Resch

Não compramos objetos para possuí-los e sim para destruí-los. A cada nova compra já estamos pensando na próxima. A efemeridade da moda acaba funcionando como antídoto para curar a ansiedade e saciar em pequenas porções a sede de emoções. A cada semana, uma nova coleção na vitrine, a cada dia um novo capítulo na novela das oito, a cada seis meses a nova versão do carro do ano, um novo restaurante imperdível é inaugurado. Somos todos, então, fantoches no “teatro” do consumo. O que quer dizer que os sujeitos não têm mais a preocupação, ao consumir, em buscarem objetos duráveis e que permitam a eles identificarem-se em um conjunto homogêneo de outros sujeitos, como o era na época da estética da estabilidade pregada pelo fordismo, mas, diferentemente disso, o que desperta a atenção dos consumidores são objetos fugazes e que permitam que os mesmos se distingam em um determinado meio social.

Jean Baudrillard,
Sociedade de Consumo

terça-feira, 17 de julho de 2012

A Sociedade é um Crime Perfeito


Domingo, 15 de julho de 2012.


Eu estava num ônibus com destino à São Paulo, SP. O ônibus fez uma parada na cidade de Governador Valadares, MG, para trocar de motorista. Desci do ônibus e fui ao banheiro, quando voltei fui abordado por um homem de aparentemente 35 anos, mal vestido e com odor que denunciava, não somente o tempo em que ele estava sem banho, mas o crime perfeito de uma sociedade saturada. Ouvi-o pedir 25 centavos, porém o preconceito por estranhos mal vestidos travestido em medo, me obrigou a ignorá-lo e antes de entrar no ônibus olhei para trás e visualizei novamente aquele homem. Um olhar penetrante que pedia socorro, um olhar inocente e ao mesmo tempo culpado. Um olhar que denunciava silenciosamente o meu crime. Não sei o seu nome, a sua história, de onde vinha e pra onde iria. Não sei se tem ao menos uma família. Não sei onde está. E nem sei sequer se está vivo ou morto. Não sei se é mais um destes expulsos dos grandes centros pela policia ou política de "limpeza urbana" com uma passagem na mão para uma terra distante. Ou se é um destes expulsos de casa pelas próprias famílias.

O crime perfeito de uma sociedade saturada que inflige a culpa e o castigo da exclusão sobre todos aqueles que não se enquadram. Lhes negam emprego, negam trabalho, negam uma moradia, negam o pão de cada dia. Não lhes é permitido ficar em lugar nenhum lugar, porque o lugar não somente não os pertence, como pertence legalmente a alguém. São obrigados a ficar vagando de um lugar para o outro. Ao lhes negar emprego ou trabalho implicitamente também lhes negam o status de cidadão, lhes negam dignidade e até mesmo direito de possuir uma alma, se for realmente verdade que o trabalho dignifica a alma. Lhes negam até o direito de existir. Talvez se lhes dessem a oportunidade, mudariam até de planeta, desde que pudessem ter uma alma, dignidade e um trabalho.


Sentimos compaixão por eles não porque somos bons, mas porque sentimo-nos culpados diante deles. Nenhum crime de guerra, holocausto ou genocídio se compara com o nosso crime diário. Em todos os lugares do mundo, não poupamos homens, mulheres ou crianças de nenhuma nacionalidade, de nenhuma etnia, de nenhuma religião. Chegamos ao absurdo fato de que para existir precisamos possuir. Possuir casas, carros apartamentos, dinheiro. Precisamos comprar, gastar, consumir, esbanjar. Desde então consumimos o tempo todo como se houvesse um buraco negro insaciável dentro de cada um nós e o objetivo final da existência fosse apenas este. O absurdo fato de que as relações humanas não são mais mediadas pela solidariedade, pela cooperação e sobrevivência conjunta, mas mediadas pelo capital, pelo consumo e por objetos mágicos de consumo que adquirem vida e se tornam a razão da existência humana.

A sociedade é um mito. Ao contrário do progresso imaginado no tempo das Luzes, nos degeneramos, regredimos e nos tornamos a cultura mais estranha, irracional e também, ao contrário de qualquer outra cultura selvagem, a menos espirituosa. Não temos nenhum deus senão o próprio capital. Mas para nos salvar é preciso que sacrifiquemos todas essas almas ao grande deus metamorfoseado em animais estampados em mágicos pedaços de papéis.

- Alan Teixeira


segunda-feira, 16 de julho de 2012

Pertencer



Um amigo meu, médico, assegurou-me que desde o berço a criança sente o ambiente, a criança quer: nela o ser humano, no berço mesmo, já começou.Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos que aqui não importam, eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada e a ninguém. Nasci de graça.

Se no berço experimentei esta fome humana, ela continua a me acompanhar pela vida afora, como se fosse um destino. A ponto de meu coração se contrair de inveja e desejo quando vejo uma freira: ela pertence a Deus. Exatamente porque é tão forte em mim a fome de me dar a algo ou a alguém, é que me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto preciso e de como sou pobre. Sou, sim. Muito pobre. Só tenho um corpo e uma alma. E preciso de mais do que isso.

Com o tempo, sobretudo os últimos anos, perdi o jeito de ser gente. Não sei mais como se é. E uma espécie toda nova de "solidão de não pertencer" começou a me invadir como heras num muro.
Se meu desejo mais antigo é o de pertencer, por que então nunca fiz parte de clubes ou de associações? Porque não é isso que eu chamo de pertencer. O que eu queria, e não posso, é por exemplo que tudo o que me viesse de bom de dentro de mim eu pudesse dar àquilo que eu pertenço. Mesmo minhas alegrias, como são solitárias às vezes. E uma alegria solitária pode se tornar patética. É como ficar com um presente todo embrulhado em papel enfeitado de presente nas mãos - e não ter a quem dizer: tome, é seu, abra-o! Não querendo me ver em situações patéticas e, por uma espécie de contenção, evitando o tom de tragédia, raramente embrulho com papel de presente os meus sentimentos.

Pertencer não vem apenas de ser fraca e precisar unir-se a algo ou a alguém mais forte. Muitas vezes a vontade intensa de pertencer vem em mim de minha própria força - eu quero pertencer para que minha força não seja inútil e fortifique uma pessoa ou uma coisa.

Quase consigo me visualizar no berço, quase consigo reproduzir em mim a vaga e no entanto premente sensação de precisar pertencer. Por motivos que nem minha mãe nem meu pai podiam controlar, eu nasci e fiquei apenas: nascida.

No entanto fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram por eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança.

Mas eu, eu não me perdôo. Quereria que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e curar minha mãe. Então, sim: eu teria pertencido a meu pai e a minha mãe. Eu nem podia confiar a alguém essa espécie de solidão de não pertencer porque, como desertor, eu tinha o segredo da fuga que por vergonha não podia ser conhecido.

A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me dar a medida do que eu perco não pertencendo. E então eu soube: pertencer é viver. Experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe sôfrego os últimos goles de água de um cantil. E depois a sede volta e é no deserto mesmo que caminho!


- Clarice Lispector,
A Descoberta do Mundo

quinta-feira, 12 de julho de 2012

A Fatalidade do Não


A palavra de que eu gosto mais é não. Chega sempre um momento na nossa vida em que é necessário dizer não. O não é a única coisa efetivamente transformadora, que nega o status quo. Aquilo que é tende ...sempre a instalar-se, a beneficiar injustamente de um estatuto de autoridade. É o momento em que é necessário dizer não. A fatalidade do não - ou a nossa própria fatalidade - é que não há nenhum não que não se converta em sim. Ele é absorvido e temos que viver mais um tempo com o sim.

José Saramago
in 'Folha de S. Paulo (1991)

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Ler é prolongar a vida

Tenho a impressão de que ler é prolongar a vida. Quantas vezes lemos um livro e nos acompanha aquela sensação de sermos sugados para uma outra realidade e, muitas vezes, parece que nos é permitido viver uma outra vida. Como se cada leitura fosse uma viagem por lugares antes insondáveis pela nossa própria imaginação. Ao fim de cada viagem, retornamos à nossa própria existência como se durante a leitura estivéssemos de férias da nossa própria vida. E como voltamos mais sábios ao fim de cada viagem. Se o tempo de cada viagem fosse acrescentado a nossa idade, facilmente poderíamos viver mais do que Matusalém.  

- Alan Teixeira

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Amor é uma espécie de preconceito

O amor é uma espécie de preconceito. A gente ama o que precisa, ama o que faz sentir bem, ama o que é conveniente. Como pode dizer que ama uma pessoa quando há dez mil outras no mundo que você amaria mais se conhecesse? Mas a gente nunca conhece.

- Charles Bukowiski

terça-feira, 3 de julho de 2012

O Defeito da Juventude

Por isso, um homem jovem não é bom ouvinte de aulas de ciência política. Com efeito, ele não tem experiência dos fatos da vida, e é em torno destes que giram as discussões referentes a ciência política; além disso como os jovens tendem a seguir suas paixões, esse estudo ser-lhes-à vão e improfícuo, já que o fim ao qual se visa não é o conhecimento, mas a ação. 

E não faz diferença alguma que seja jovem na idade ou no caráter; o defeito não é questão de idade, e sim do modo de viver e de perseguir os objetivos ao sabor da paixão. Para tais pessoas, assim como para os incontinentes, a ciência não é proveitosa; mas para os que desejam e agem de acordo com a razão, o conhecimento desses assuntos será muito vantajoso. 

- Aristóteles,
Ética a Nicômaco

segunda-feira, 2 de julho de 2012

A Queda


Ergui a cabeça e ia acender um cigarro, o cigarro da satisfação, quando, no mesmo momento, estalou um riso atrás de mim. Surpreendido, voltei-me bruscamente: não havia ninguém. Fui até ao parapeito: nenhum batelão, nenhum barco. Virei-me para a ilha e de novo ouvi o riso pelas minhas costas, um pouco mais distante, como se fosse a descer o rio. Fiquei ali, imóvel. O riso diminuía, mas eu ouvia-o ainda mais distintamente por detrás de mim, vindo de parte nenhuma, a não ser das águas. Ao mesmo tempo, percebia que o meu coração batia precipitadamente. Compreenda-me bem, este riso nada tinha de misterioso; era um riso bom, natural, quase amigável, que repunha as coisas no seu lugar. Em breve, aliás, deixei de o ouvir. Alcancei os cais, meti pela rua Dauphine, comprei cigarros, sem necessidade alguma. Estava aturdido, respirava a custo. Nessa noite, telefonei para um amigo que não estava em casa. Hesitava em sair, quando, de repente, ouvi rir sob as minhas janelas. Abri. Efectivamente, no passeio, alguns jovens despediam-se alegremente. Fechei de novo as janelas, encolhendo os ombros; ao fim e ao cabo, eu tinha um processo para estudar. Dirigi-me à casa de banho para beber um copo de água. A minha imagem sorria no espelho, mas pareceu-me que o meu sorriso era dúbio…

- Albert Camus,
in A Queda
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