Que somos todos diferentes, é um axioma da nossa
naturalidade. Só nos parecemos de longe, na proporção, portanto, em que não
somos nós. A vida é, por isso, para os indefinidos; só podem conviver os que
que nunca se definem, e são, um e outro, ninguéns.
Cada um de nós é dois, e quando duas pessoas se encontram,
se aproximam, se ligam, é raro que as quatro possam estar de acordo. O homem
que sonha em cada homem que age, se tantas vezes se malquista com o homem que
age, como não se malquistará com o homem que age e o homem que sonha no Outro?
Somos forças porque somos vidas. Cada um de nós tende para
si próprio com escala pelos outros. Se temos por nós mesmos o respeito de nos
acharmos interessantes (...) Toda a aproximação é um conflito. O outro é sempre
o obstáculo para quem procura. Só quem não procura é feliz; porque só quem não
busca, encontra, visto que quem não procura já tem, e já ter, seja o que for, é
ser feliz, como não pensar é a parte melhor de ser rico.
Olho para ti, dentro de mim, noiva suposta, e já nos
desavimos antes de existires. O meu hábito de sonhar claro dá-me uma noção
justa da realidade. Quem sonha de mais precisa de dar realidade ao sonho. Quem
dá realidade ao sonho tem que dar ao sonho o equilíbrio da realidade. Quem dá
ao sonho o equilíbrio da realidade, sofre da realidade de sonhar tanto como da
realidade da vida e do irreal do sonho como do sentir a vida irreal.
Estou-te esperando, em devaneio, no nosso quarto com duas
portas, e sonho-te vindo e no meu sonho entras até mim pela porta da direita;
se, quando entras, entras pela porta da esquerda, há já uma diferença entre ti
e o meu sonho. Toda a tragédia humana está neste pequeno exemplo de como
aqueles com quem pensamos nunca são aqueles em quem pensamos.
Fernando Pessoa,
'O Rio da Posse'
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