"A literatura tem essa magia de nos tornar contemporâneos de quem quisermos." (Inês Pedrosa)

domingo, 3 de junho de 2012

Minha Tragédia

A minha vida, tragédia caída sob a pateada dos anjos e que só o primeiro acto se representou. 

Amigos, nenhum. Só uns conhecidos que julgam que simpatizam comigo e teriam talvez pena se um comboio me passasse por cima e o enterro fosse em um dia de chuva. 


O prémio natural do meu afastamento da vida foi a incapacidade, que cirie nos outros, de sentirem comigo. Em torno a mim há uma auréola de frieza, uma halo de gelo que repele os outros. Ainda não consegui não sofrer com minha solidão. Tão difícil é obter aquela distinção de espírito que permeia ao isolamento ser um repouso sem angústia.

Nunca dei crédito à amizade que me mostraram, como não teria dado ao amor, se mo houvessem mostrado, o que aliás, seria impossível. Embora nunca tivesse ilusões a respeito daqueles que se diziam meus amigos, consegui sempre sofrer desilusões com eles – tão complexo e sutil é o meu destino de sofrer.

Nunca duvidei que todos me traíssem; e pasmei sempre quando me traíram. Quando chegava o que eu esperava, era sempre inesperado para mim. Compreendi que era impossível a alguém amar-me, a não ser que lhe faltasse de todo o senso estético – e então eu o desprezaria por isso; e que mesmo simpatizar como não podia passar de um capricho da indiferença alheia.


Ver claro em nós e em como os outros nos vêem! Ver esta verdade frente a frente! E no fim o grito de Cristo no Calvário, quando viu, frente a frente, a sua verdade; Senhor, senhor, por que me abandonaste?



- Fernando Pessoa,

Livro do Desassossego

Um comentário:

Richard disse...

Caro Alan,
Fernando Pessoa é extraordinário! Parece ter algo a dizer em cada passagem da nossa vida.

Um abraço do seu,

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